“Ida”, de Pawel Pawlikowski, uma obra de arte trágica do cinema contemporâneo
Há filmes que transformam a nossa forma de olharmos para o cinema. Seja porque nos atingem de forma pessoal, porque nos ensinam mais sobre cinema, ou porque simplesmente nos fazem sentir algo que muitas vezes não sabemos explicar. Esse é um dos propósitos e benefícios da arte, fazer-nos sentir alguma coisa.
“Ida”, filme de Pawel Pawlikowski, faz-nos sentir muita coisa, mas acima de tudo ensina-nos em 82 minutos o que é cinema, tanto de um ponto de vista técnico como simbólico.
Existem várias camadas narrativas em “Ida”. A primeira, mais superficial, aborda a procura dos pais de Anna (Agata Trzebuchowska), uma jovem freira que está a pouco tempo de se comprometer completamente com a sua Igreja. Anna tem que conhecer a sua tia antes de fazer os seus votos. Wanda (Agata Kulesza) é o oposto de Anna em todos os sentidos. Mulher experiente, alcoólica e com vários pecados, Wanda parte à procura da verdade sobre a sua irmã, a mãe de Anna, e à procura da sua verdadeira identidade. É aqui que entramos na segunda camada narrativa de ida, a busca pela identidade, explorado nas duas personagens principais: Anna é uma jovem freira que nunca viu o mundo exterior, não conhece o amor carnal nem os vícios da sociedade. Wanda é uma mulher não crente, que não tem amor próprio e vive mergulhada nos vícios da sua sociedade.
É com estes dois personagens extremos que a Pawel Pawlikowski parte em busca de respostas. Anna descobre que pertence a uma família de Judeus, algo que ainda era visto de forma controverso na Polónia dos anos 60. Com a ajuda da sua tia, Anna descobre também a verdade sobre a sua família que tinha sido assassinada durante a ocupação germânica da segunda guerra mundial. Além disso, descobre que tinha um irmão que também foi assassinado. Ao longo de todo este duro processo onde se descobre a verdadeira tragédia sobre a sua família, Anna permanece calma graças à ajuda de Deus e da sua fé. Por outro lado, Wanda mergulha cada vez mais num negro buraco depressivo no qual os seus vícios a engolem por completo.
Pawel Pawlikowski explora ao longo do filme este confronto entre crença cega, fé e vida “pura” em contraste com uma vida rendida a alguns dos piores vícios sociais, no caso de Wanda os homens e o álcool. Com o desenvolvimento da narrativa vemos que Wanda perdeu muito mais do que aparenta inicialmente e o facto de ter descoberto finalmente a verdade sobre a sua irmã e ser confrontada com essa tragédia destrói a pouca força interior que ainda tinha.
Com a morte da sua tia, por suicídio, e a poucos dias dos seus votos, Anna decide descobrir a vida que nunca tive, mas sem nunca assumir essa vontade como acto de rebeldia. É na calma total do personagem que Agata Trzebuchowska brilha como actriz. A forma como questiona a sua fé com a morte da tia e com o desejo carnal é arrepiante e fruto de uma tremenda maturidade da personagem e actriz. Vale a pena dedicar uma vida à fé sem nunca ter experimentado tudo o resto? Pela primeira vez na sua vida Anna tem o poder de decidir por si mesma e após passar por um romance, fumar o primeiro cigarro, experimentar o primeiro copo de álcool, os primeiros saltos altos, os primeiros vestidos, decide regressar à sua vida de fé.
A crueldade de “Ida” sente-se através do que não é dito. A personagem de Wanda, apesar de exprimir bastante, só se consegue libertar nos momentos de maior silêncio. E é ao perder a sua neta para o convento que Wanda sente que perdeu tudo na vida. O pouco contacto com a bondade na sua vida desaparece e esta perde o motivo para viver. Assim como todos os seres humanos, Wanda precisa de uma razão para continuar, e quando esta razão desaparece, também a vida de Wanda acaba.
Seja como tributo, seja por mera curiosidade, Anna decide experimentar a vida da sua tia e chegar à sua própria conclusão. É esse confronto entre o “bem” e o “mal” que Pawel explora de forma brilhante através de detalhes patentes nos seus planos de mestre. Tecnicamente “Ida” é um cinema no seu estado mais puro, é uma autêntica aula onde aprendemos fotografia, enquadramento, montagem e como construir personagens densos sem termos que explorar demasiado os seus sentimentos através de palavras. Nota também para a direcção de fotografia de Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski, que acrescentam alma a cada plano, a cada edifício, paisagem e personagem.
“Ida” é um acto de coragem por parte de uma personagem que perdeu tudo na vida, mas quer decidir por si própria e ter a certeza das suas escolhas, mesmo que possam ser as erradas.