Esta civilização não é para nós, mas a “Civilização”, de Lígia Soares, é para todos. E é amanhã, em Ílhavo
“Que raio de espaço de liberdade é este que nos foi dado que não sabemos aproveitar?”. A pergunta é de Lígia Soares. Escreveu, encenou e interpreta Civilização, que sobe ao palco da Casa da Cultura de Ílhavo esta sexta-feira, às 21:30, à boleia do 23 Milhas. A dias do Carnaval, este é um espetáculo cheio de máscaras e representações, com a participação especial dos Cardadores de Vale de Ílhavo. Uma espécie de sexta-feira e a vida selvagem que questiona uma ilha desabituada de se ralar.
A meio de Civilização, há uma pessoa que faz de cadeira. A pessoa, que interpreta uma cadeira sorumbática, tanto como se pode interpretar uma cadeira, lamenta-se: “lamento muito mas dói-me o tampo, quer dizer, o assento, é muito peso”. Vamos mais ou menos a metade do espetáculo de Lígia Soares, quem escreveu, encenou e interpreta a personagem que atravessa toda a peça. A Lígia, quando conversamos com ela, nota-se que lhe dói mais que o tampo, o tempo, aquele em que vivemos, não o sol, até relativamente quente, que brilhava na quarta-feira em que a encontrámos. Como para a cadeira, também para Lígia é muito peso, mas o do mundo e de uma civilização que questiona e que nos oferece para reflectir.
Começou a escrever Civilização num Laboratório de Escrita em que se auto-propôs a trabalhar a ideia da passividade do espectador. Idealizava criar uma relação directa entre o teatro e a realidade e soube rapidamente que dali resultaria uma representação da representação. Parece confuso. Tal como o público se mantém passivo na forma como assiste aos espetáculos, Lígia vê a civilização, ou uma ideia de civilização, obsoleta no sentido em que vive da própria história, passiva na forma no que não se altera, não evolui, não se revê para perceber que “já não está assente nos mesmos pilares que a tornavam humana, ou habitável, ou funcional”.
“Estamos todos em carne viva, agora”, ouve-se quase no final. No espetáculo, a palavra civilização só é dita uma vez. De resto, parece estar sempre tudo em carne viva, a arder. Lígia Soares é a personagem transversal a toda a peça, mas não é uma única personagem. É sobretudo uma voz que se multiplica em muitas outras. Há incoerência na variação entre as personagens: há as que se mobilizam para agir e as que assumem um perfil de autofagia, de inação, até de desapego. E, por isso, todas estas vozes são a voz de uma coisa apenas: inquietação. Porquê, Lígia sabe: “há várias coisas na nossa realidade que, à partida, nos convocariam a agir, mas escolhemos a passividade”. Como no teatro, lá está. Ou em quase todo o teatro. Neste aqui, o público é convidado a participar, ou pelo menos constantemente convocado a fazer parte de algo, embora, admite a actriz e encenadora, “não exista uma expectativa de resposta”. Podem ir descansados.
Falamos em ser convocados a dizer algo e fugimos facilmente até ao assunto dos últimos dias: Marega, a sua saída de campo, o racismo evidente e permanente que nos afasta, ou devia afastar, do conceito de civilização. No início, Lígia afirma com alguma satisfação que o episódio desperta uma voz que é muito rara no futebol, um campo que “de repente se tornou um espaço público de discussão tão grande e tão abrangente”. Mas segue-se o desconforto: “seria de esperar que os colegas não tentassem acalmar a lucidez daquele homem, naquele momento, não é a voz da razão que tem de calar-se”. Lígia Soares atribui esse bloqueio a um “medo muito grande e generalizado que temos de sequelas, de tomar posições”. E incomoda-se mais um pouco porque “há um lado muito absurdo na sociedade que se tornou absolutamente consensual e nos desimplica de pensar as coisas até ao fim”. E é aqui que nos pergunta: “que raio de espaço de liberdade é este que nos foi dado que não sabemos aproveitar?”. Não sabemos responder, e também preferimos considerar que a pergunta era retórica, mas Lígia continua, “é preciso, mais que cuidar, destruir a civilização conforme a conhecemos, para avançarmos, para não ficarmos aqui”. O “aqui” é este lugar em que a actriz diz termos começado a ser, mais que pós-modernos, “pós-sensíveis”, “sensibilizamo-nos, mas não sentimos”, vivendo conformados e às vezes confortáveis com a ideia de estarmos anestesiados e de comermos demasiada carne. Um murro na civilização.
“Somos, pelo menos, sobreviventes dos nossos naufrágios individuais”, ouvimos a certa altura. Mas não sobrevivemos ao resto. A peça termina, aliás, com uma festa, a que Lígia chama poema-orgia, epílogo de um fracasso conjunto. Um fracasso que é celebrado como se do Carnaval se tratasse. E é aí que entram os Cardadores de Vale de Ílhavo, que Lígia Soares introduz como elementos que representam tudo o que é sexual, selvagem, amoral, não perpetuador da apatia generalizada do cortejo em que se tornou a civilização de Civilização. Depois da consciência, a purga. A homenagem a um estado selvagem que questiona a civilização no estado em que ela é, neste momento, legitimada.
Nesta euforia final, há uma contagem de fósforos, numa invocação do conto “A Menina dos Fósforos”, de Hans Christian Andersen. Lígia conta fósforos contando frustrações. No final, reúne-os na sua caixa, que enche. Deseja fazer a justiça poética que a Menina merece: mais uma oportunidade, mais uma caixa de fósforos para não morrer de frio, como no conto. Lígia deseja curar algo na sociedade.
Promete que a caixa de fósforos é para a Menina. Mas não estará a civilização já morta de frio? Os bilhetes para Civilização estão à venda nos espaços do 23 Milhas e online na bilheteira da BOL.