Entrevista. Lavoisier: “Nos poemas de Miguel Torga há versos, não sei se imponentes, mas muito terrenos”
Miguel Torga não é dos poetas mais comuns a serem musicados, como, por exemplo, o é Fernando Pessoa. Mas eis que a dupla Lavoisier, composta por Patrícia Relvas e Roberto Afonso, não se fez rogada ao lançar, este ano, Viagem a um Reino Maravilhoso, álbum que conta com 8 composições que servem de base aos poemas do autor dos montes. Para o efeito, também foram muito felizes na sonoplastia utilizada — na captura dos sons dos espaços torguianos a cargo de João Bento — como forma de ligação entre os temas. A verdade é que Torga pode ser ar em alguma poética sua, mas, essencialmente, é ‘Terra’ — sim, ‘Terra’ daquela visceral, com ‘T’ maiúsculo. Daí os seus poemas serem bastante polidos, fortes e certos nas palavras.
Sobre isso mesmo, Roberto afirma: “o que eu quero dizer é que dentro dos poemas havia versos, não sei se posso dizer imponentes, mas muito terrenos, muito fortes. Por exemplo, existia a ideia e depois passava de um verso para o outro só com uma palavra e um ponto de exclamação, por exemplo. A ideia de ritmo não nos foi facilitada, digamos assim, mas pensámos que o desafio era muito interessante, até mesmo por causa disso.” Era difícil, mas foi conseguido e, para o efeito, também tiveram a oportunidade de percorrer os roteiros torguianos, que os introduziu nos mesmos espaços pisados por Miguel Torga. Sobre tudo isto e mais, falámos na conversa que se segue e que, agora, podem ler.
Vocês já tinham ligação com Miguel Torga ou foram-no descobrindo no processo de realização do disco?
Patrícia: O Roberto é transmontano. Teve ligação com Miguel Torga mais cedo, talvez, do que eu, que sou das Beiras.
O Roberto é de Trás-os-Montes, de que localidade em específico?
Roberto: A minha família é de Vinhais. Costumo dizer que sou bastardo de nascença porque fui nascer a Lisboa, fui contra a minha vontade [risos]. Mas toda a minha família é de Lagarelhos, ao pé de Vinhais.
E a Patrícia é das Beiras, certo?
Patrícia: Exacto. Mas, como estava a dizer, acho que o que nos chegou primeiro talvez tenham sido os “Novos Contos da Montanha”, depois os “Bichos”. Lembro-me de mais tarde aprofundarmos o interesse pelo trabalho do Miguel Torga e comprarmos uma edição muito antiga, num alfarrabista em Lisboa, do “Cântico do Homem” de onde, curiosamente, tiramos os primeiros poemas a serem musicados. Também foi de lá que decidimos retirar e imprimir um poema chamado “Eis-nos aqui” na contracapa do nosso primeiro EP, editado em fevereiro de 2014 e intitulado de De Eus para Mim, num Fa(r)do de Alecrim, Durme Sra. Do Almurtão. Mas muita da poesia que ele escreveu, realmente, desconhecia, como tantas outras coisas que passamos a conhecer, após iniciarmos o projecto. Desde o trabalho feito nos Diários, à “Criação do Mundo” e por aí fora.
Os poemas têm ritmo, musicalidade. Vários poetas fazem uso dessa musicalidade na sua poesia, tal como se estuda em Pessoa, mesmo não estando ligados, propriamente, à música. Como foi descobrir esse ritmo e musicalidade em Miguel Torga? Isso influenciou a escolha dos poemas a musicar? Como é que caracterizariam o poeta nesse sentido?
Roberto: Sim, definitivamente a escolha do poema teria de ser algo funcional à música. Ou seja, quando aceitámos o desafio e começámos a tentar pesquisar toda a obra poética de Miguel Torga, inevitavelmente fomos ter à sua antologia poética. Foi depois do mergulho na sua poesia, que começámos a tentar perceber quais dos poemas fariam mais sentido, quer a nível estético e de mensagem, quer a nível rítmico. Devemos dizer que não foi fácil a nível rítmico, uma vez que a métrica utilizada por Miguel Torga — não sei se intencionalmente ou não — era muito forte e não muito ritmada. O que eu quero dizer é que dentro de alguns poemas havia versos, não sei se posso dizer imponentes, mas muito terrenos, muito fortes. Por exemplo: existia uma imagem/ideia, que era interrompida de um verso para o outro, só com uma palavra e um ponto de exclamação. A ideia de ritmo, de facto, não nos foi facilitada, digamos assim, mas abraçámos o desafio que se adivinhava muito interessante. Nós já tínhamos feito algum trabalho em torno de poesia, com os exemplos da poetisa de Viseu, Judith Teixeira, e Fernando Pessoa, e em ambas situações sentimos que realmente havia muito ritmo. Agora, em Miguel Torga foi um bocadinho mais difícil. Acho que demos mais atenção à estética da mensagem, à sua força, a poemas que realmente nos gritavam muito, e não tanto ao lado rítmico. Isso acho que foi pensado, a posteriori. Teve mais a ver com a questão de: como é que nós vamos encaixar isto numa canção?
Como disseste, a poética de Miguel Torga é bastante terrena, com versos bastante fortes e incisivos. Isso, no entanto, acaba por ser importante para nos transportar para o espaço físico e criar uma relação com ele, principalmente para quem não é transmontano, como é o caso da Patrícia. Perceberam isso?
Patrícia: Sendo da Beira Alta, fronteiriça a Trás-os-Montes, há ali muitas coisas com as quais me familiarizo. Mas acho que sim, a ideia de paisagem, da terra e da região em Miguel Torga é de um cariz extremamente urgente. Para nós, também foi importante poder gravar o álbum lá, ter feito a residência artística e o convite ter existido por parte de pessoas de lá, ou muito perto de Vila Real, como é o caso das pessoas que formam o corpo da Cooperativa Transa. Então, tudo isso foi muito positivo, o facto de ter tido a oportunidade de encarar estas canções com o contexto da terra e, particularmente, deste reino tão maravilhoso de Trás-os-Montes.
Vocês também tiveram a oportunidade de trilhar os caminhos de Miguel Torga, certo?
Roberto: O roteiro torguiano vislumbrou-se a partir de um desafio feito pela Cooperativa Transa para nós participarmos nos ‘Ciclos das novas Canções da Montanha’, em São Martinho de Anta. E quem esteve naturalmente, também, por trás disso foi o Espaço Miguel Torga e o seu director, o João Cerqueira, que tão carinhosa e sapientemente nos apresentou pela primeira vez aos tais roteiros. Acho que foi o mote principal para podermos começar a envolver-nos mais e melhor com o poeta e escritor. Mais do que a sua obra, o que foi realmente importante foi o ter lá estado. Podermos cheirar e ver todas aquelas paisagens que, de facto, nos serviram tanto de inspiração.
Vocês fazem uso da sonoplastia para este álbum através da gravação dos sons da natureza. Além do lado poético envolvente, isso aufere teatralidade à vossa música. Vocês têm noção disso, que a vossa música, no cômputo geral, não só neste projecto, pode criar em nós essa sensação de teatralidade?
Patrícia: Este projecto, especificamente, Viagem a um Reino Maravilhoso, composto pelo lado A e o lado B, apresentado no formato vinil e foi pensado no sentido de ser uma viagem pelos caminhos que foram percorridos. Há, portanto, uma narrativa, uma história. Mas não sei…
Roberto: Bem, acho que a teatralidade existe, é verdade, e é uma boa questão porque dentro do nosso espectáculo ou da maneira como Lavoisier se apresenta, sendo só duas pessoas, gostamos muito do factor canção, mas especialmente do factor contador de histórias. Interpretamos ou tentamos interpretar cada tema tal como uma história, talvez porque também gostamos de as ouvir e ver. Neste caso específico do Miguel Torga, achámos que os poemas também contavam uma história, mas há, de facto, um outro potencial dentro do poema que pode ser abstracto e político ao mesmo tempo. Ele pode estar ligado à natureza, mas também pode conter uma mensagem de urbanidade.
Quando começámos a gravar o álbum, estávamos a pensar logo no espectáculo, como haveríamos de apresentar este trabalho e, de facto, o espectáculo prendeu-se mais pela questão auditiva, sonora, do que pela paisagística. Sei lá, podíamos cair em certos facilitismos e fazer projecções de vídeo, mostrar a beleza de Trás-os-Montes — que também é legítimo, atenção — mas a necessidade de trazermos o João Bento — que estudou nas Caldas da Rainha, onde todos tiramos o curso, embora não nos tenhamos conhecido lá — passou pela decisão/necessidade de que esta seria uma viagem sonora a este reino maravilhoso. Ele fez um trabalho incrível de captação sonora dos espaços e dos roteiros torguianos, e também de Coimbra. É curioso, porque ele já tinha estado em Coimbra a gravar ambiências e, como também sabia que grande parte da vida do Miguel Torga foi em Coimbra, onde ele tinha o consultório, decidimos introduzir essas ambiências. Achamos que funcionou muito bem na ligação dos temas no álbum e na posterior “história contada” ao vivo.
A nível instrumental, vocês também contaram com a participação do Conservatório de Vila Real. Foi a vossa primeira experiência nesse sentido, de abrir o leque de orquestração das vossas composições?Patrícia: Não, a nossa primeira experiência nesse sentido foi com a banda filarmónica de Vale de Azares, “Os Bazófias”, de onde sou realmente oriunda. O que aconteceu foi que, quando já estávamos a desenvolver este trabalho respectivo a Miguel Torga, fomos convidados para fazer um projecto com a comunidade em Vila Real, com os alunos do conservatório. A nós pareceu-nos uma feliz coincidência porque, como já estávamos a desenvolver algumas músicas (pelo menos 3 que já tínhamos começado), surgiu a ideia e a oportunidade de podermos fazer isto com eles, que, afinal de contas, são seus conterrâneos. E assim foi, correu tudo muito bem, tão bem que acabámos por incluí-los no álbum, em dois temas, e mais tarde no concerto de apresentação do álbum no Teatro de Vila Real.
Mas parece-me que a própria orquestração ou a recorrência aos alunos do conservatório — tendo em conta o vosso trabalho em geral — constituiu um casamento muito feliz. Sentiram que essa já era uma evolução natural da vossa música?
Roberto: No último trabalho, no É Teu, houve uma orquestração feita por nós, mas muito minimalista, no sentido em que só foi usada a guitarra, o baixo, as vozes, a percussão e a viola de arco num tema popular do nosso amigo José Valente. Mas é curiosa essa questão, porque, de facto, houve sempre uma intenção muito plástica de darmos nuances diferentes a estes instrumentos para que, realmente, soassem a uma orquestração. Não falo de uma orquestra como a gente a conhece, mas, por exemplo, pegar numa guitarra e poder alterá-la com os efeitos que temos, e realmente fazer com que ela não soe a uma guitarra é uma ideia/urgência recorrente no nosso trabalho. E isso surgiu, também, nas discussões que tínhamos com o José Fortes, como tratar o som, como o som se comporta a nível de mistura, como é que há determinadas frequências que têm de ser utilizadas de determinada maneira para não entrarem em conflito com outras. Acho que sim, que foi natural.
Não considerando uma evolução, acho que, tal como a Patrícia disse, foi uma coincidência, uma feliz coincidência termos ido trabalhar com os alunos do conservatório de Vila Real, que são extremamente talentosos, com uma dimensão musical muito interessante que, com total liberdade da nossa parte, puderam introduzir as suas ideias, de uma forma assustadoramente profissional. Acredito que esta experiência os terá feito crescer bastante, mas a nós também nos fez crescer muito. Têm um futuro à frente deles muito risonho se decidirem continuar na música. Nós também tentámos transmitir essa força com a nossa experiência de fazer música em Portugal. Embora a realidade não seja muito feliz, acho que, com determinação e perseverança, os resultados aparecem.
Vocês têm formação formalizada a nível musical ou tudo começou de forma descomprometida?
Patrícia: Bom, eu começo já um pouco tarde. Na verdade começou por ser descomprometido, quando já estava a estudar nas Caldas da Rainha, design de cerâmica e vidro. Mas tudo se tornou sério muito rapidamente e, daí a assumir o compromisso que tenho hoje para com a música, foi um caminho bastante natural, apesar de imprevisível.
Roberto: Eu tive algumas aulas com alguns professores, mas fui muito autodidacta. Comecei por aprender a tocar guitarra com um amigo meu da mesma idade, por volta dos 14 anos. Depois, mais ou menos no momento em que apareceu o YouTube, acho eu, de repente tinha acesso, na Internet, a muitas coisas com as quais podia aprender. Como autodidacta, foi uma descoberta muito grande para mim, mas ainda cheguei a frequentar o Conservatório de Música da Póvoa de Santo Adrião um ano e meio. A formação académica que nós temos na área musical é bastante reduzida, como dá para perceber. Foi quando começou Lavoisier, ou ainda mesmo nas Caldas, quando tivemos os nossos primeiros projectos musicais, que aprendemos realmente o que é isto de “fazer música”, com a mão na massa, como se costuma dizer. Foi a ensaiar todos os dias e a tentar perceber como é que as coisas se fazem, muito na tentativa/erro, que chegamos onde estamos hoje, sempre com muita dedicação.
No início da entrevista abordaram como já haviam trabalhado a poesia de Pessoa e Judith Teixeira. Podem falar um pouco acerca da importância da palavra para o vosso trabalho?
Patrícia: A importância da palavra na trajectória de Lavoisier começa em Berlim, daí ser engraçado começarmos a cantar em português onde grande parte das pessoas não percebia nada daquilo que nós estávamos a dizer [risos]. No entanto, acho que foi muito bom para nós, através da música, conseguirmos tentar exprimir outra ideia que fique para além do conceito de uma palavra. Embora a musicalidade e a expressão que sempre assumimos nos nossos concertos em Berlim fosse vital, a importância de cantar em português tornava-se cada vez maior, conseguindo ser até mesmo visceral, traduzindo-se na maneira mais natural de abordarmos os temas. Começámos muito pela música popular, onde a palavra acaba por abarcar um outro papel diferente do da poesia — não que fosse menor, uma vez que também conseguia traduzir estados de alma e metáforas em relação à realidade que nos rodeia, mas eram mais terrenas do que eruditas. A poesia, entretanto, chegou e é bom ter acesso a estes grandes escritores, e atrevermo-nos a musicar aqueles pensamentos e aquelas palavras que muitas vezes tanta vontade nos dão de cantar. A palavra em si é importante, mas não é prioritária, a música e a musicalidade acabam sim, sempre por o ser.
Se bem me lembro das aulas de Química, a Lei de Lavoisier ensina que, “na Natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Se prestarmos atenção à frase em si, acaba por, igualmente, fazer uma ponte com um lado da natureza também presente em Torga. Definiriam o vosso trabalho dessa forma, telúrico?
Roberto: A música surge-nos através de uma perspectiva artística. Nós viemos de uma faculdade onde estivemos expostos a vários ambientes artísticos, logo tivemos de estudar alguns autores e âmbitos na arte que moldaram a nossa perspectiva em relação ao que nos rodeava. Ou seja, havia cursos, como Artes Plásticas e Teatro, que contribuíram para o nosso envolvimento com essas áreas mais artísticas ou cénicas, fazendo com que sentíssemos que tínhamos alguma coisa para fazer ou dizer ao mundo, partilhando de uma visão e discurso muito inerente a quem frequentava essa mesma faculdade na altura, e as ferramentas que escolhemos para o fazer acabaram por ser a música.
Eu através da guitarra, a Patrícia através da voz, percebemos que havia mensagens que queríamos partilhar com as pessoas em forma de música. Essa música, se é telúrica ou não, se vai de encontro à natureza ou não, seria imprudente da minha parte confirmá-lo, a arte também não tem de ter essas questões tão definidas ou tão delineadas. Eventualmente, tivemos de ir à terra, tivemos de ir a uma coisa de terreno, de perceber como é que podíamos cantar em português por exemplo, uma vez que começamos a cantar em inglês. E aqui entra a questão da identidade — se nós pensamos em português, se nós sentimos em português, porque raio continuamos a cantar em inglês? De facto, chegámos a várias questões para as quais não tivemos, necessariamente, uma resposta. Sentimos que queríamos partilhar com as pessoas uma emoção qualquer e, para nós, essa emoção também teve de ser inteligível, tivemos de a entender: a terra, as nossas raízes, o canto popular, a nossa língua; todas essas questões que se traduziram, mais tarde, na primeira abordagem diferente que fizemos ao nosso cancioneiro popular. Entretanto passaríamos pelos poetas e, daí a que nós tivéssemos as nossas próprias palavras para escrever uma letra de uma canção, ainda foi um bocado.
Sim, posso dizer que o nosso trabalho é telúrico. A terra dá-te muita coisa, dá-te muita informação, a Natureza dá-te muita informação. Sendo a minha família de Trás-os-Montes ou tendo grande parte da família em Trás-os-Montes, a Patrícia em Celorico da Beira, na Beira Alta, fez com que a nossa ligação à terra fosse muito forte, não é? E essa ligação à terra traduz-se, às vezes, em estados de melancolia ou em estados de pura contemplação. Chegar a um sítio que tu conheces desde criança e poderes estar parado a olhar os montes, olhar um rio ou uma árvore, essas coisas dão-te muita informação que tu podes traduzir a nível artístico e aí, sim, transformar esse conteúdo em emoção. Talvez a própria escolha do nome Lavoisier não seja uma coincidência, mas sim uma missão.
Não pensávamos que íamos chegar aqui passados sete ou oito anos depois de termos começado este projecto em Berlim. Olharmos para trás para a longa caminhada que já percorremos e chegarmos agora a Miguel Torga, onde antes tinham sido as nossas canções, antes as canções populares portuguesas e antes Nina Simone, é inacreditável… É isso, nada se perde, talvez nada se crie também e sim, acho que sim, transformamos e somos transformadores!