Os precários do quotidiano
Esta quarentena está a ser, em termos gerais, uma espécie de micro-resolução de ano novo: toda a gente se desfez em promessas de ler os russos, de organizar o roupeiro de Inverno, de fazer exercício físico em casa. Na verdade e pelo que vejo um pouco por todo o lado, parecemos ter aprendido apenas duas coisas: olhar para um gráfico e fazer pão. Não serão competências despiciendas, mas não chegam para organizar uma feira de talentos.
A normalidade é um bem precário e um conceito que se recusa a sê-lo, na medida que não permite, ao contrário dos conceitos civilizados, uma cristalização inequívoca da sua identidade. A normalidade define-se normalmente pela sua ausência, por contraste. Temos um instinto bastante apurado para perceber quando algo ou alguém não é normal, mesmo sem conseguirmos explicar cabalmente a razão subjacente a esse instinto. É uma competência da ordem do corpo, ou melhor, da ordem do animal, do imediato. É também uma competência contextual: aquilo que é normal num determinado milieu não o é noutro.
Há muita gente que faz a sua vida num equilíbrio precário entre normalidade e diferença, numa espécie de zona cinzenta socialmente aceite por via de um pacto silencioso: desde que o sujeito seja minimamente funcional, pode ser excêntrico. E ser funcional parece resumir-se a ter dinheiro ou a ganhar dinheiro.
Funcionalidade é autonomia. E autonomia é dinheiro. De resto o sujeito pode acreditar que a terra é plana, que os vírus são na verdade perturbações do equilíbrio electromagnético do corpo ou que a rainha de Inglaterra é na verdade um lagarto. Desde que pague as contas e não seja ostensivamente incapaz de cumprir a lei, tudo bem. No caso de um sujeito multimilionário, a excentricidade não só é esperada como é, de certo modo, exigida.
Os custos de uma crise, seja ela esta, de saúde pública e intimamente radicada num medo primordial e profundo – a peste – ou seja uma guerra ou uma vaga de fome, são particularmente pesados para quem já trava diariamente uma batalha para se manter dentro dos limites da normalidade. As rotinas mudam. E as rotinas são em grande parte o esqueleto da normalidade. É alicerçado nas rotinas que o sujeito consegue domar, pelo menos em parte, uma realidade que à partida lhe é naturalmente inóspita. Rotina é controlo. Controlo é poder.
Aquém ou além das rotinas, a incerteza. Ora esta incerteza, tolerada com maior ou menor esforço nos sujeitos de raízes amplas e fundas, pode ser um obstáculo insuperável para quem domesticou o quotidiano com dificuldade. A fragilidade tende a assomar ao postigo mal os ventos mudam de direcção. A extravagância, sem dinheiro, é dificilmente suportável. As zonas cinzentas estreitam-se e a tolerância diminui. O sujeito para quem o mundo já era um problema dá por si ainda mais perdido. Mais a mais, numa crise deste tipo, com direito a possível perda de emprego e consequente rendimento, até os sujeitos equilibrados podem ver-se de repente sem chão. Imaginem os outros.
Neste momento complexo e incerto devíamos olhar para os que nos rodeiam e que amamos e aproveitar para os conhecer melhor. As fragilidades (e as forças) acabarão por vir à tona. Talvez as coisas corram bem ou razoavelmente bem e consigamos sair daqui inteiros. Mas em última análise levamo-nos a nós próprios e aos outros ao colo, pois é assim a estrutura da identidade do humano. É bom que nesta viagem tenhamos cuidado com as peças mais frágeis.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.