Por uma cultura com causas e efeitos
Na passada terça-feira, no encontro promovido pela Acesso Cultura, referi que programar em 2021 não poderá ser igual a programar em 2020. Nunca na história recente a verdade foi algo tão volátil. O que era verdade ontem, passou a não o ser hoje. Se ser contemporâneo é responder ao hoje, a arte e a cultura em geral terão que antecipar a necessidade para criar sentido.
Como já é habitual, a Rita Von Hunty, no vídeo que aqui sugiro, antecipou-se. Apesar de não usar as mesmas referências, diz tudo aquilo que eu acho da arte que pensa poder não reflectir o momento. Haverá poesia depois de Auschwitz? Claro que não. Não se pode alimentar o sistema e o modelo que nos levou ao lugar desumano. Programar sem pensar no que vivemos é alimentar o erro, é sermos cúmplices do que agora vivemos. A precariedade da arte e do ecossistema cultural não nos pode conduzir para uma ação precipitada. Isso será apenas a manutenção do problema. Onde está o espírito crítico? Onde está o espelho da vida? Para que serve a arte se não para criarmos outras perspectivas humanas?
E o hoje? Dará para cancelar vidas? Ou teremos que repensar as nossas ações culturais para continuarmos a lutar pelos encontros que ambicionamos?
E esta coisa dos velhos? Voltamos a pensar no valor das pessoas pela sua capacidade produtiva? Como é que podemos partir do pressuposto que há vidas com mais valor do que outras? Estes velhos são os que lutaram pela democracia em Portugal. São os que ergueram o estado social, são os que montaram o Serviço Nacional de Saúde. Estas vidas que porventura possam considerar menos válidas, estão hoje a salvar-nos pelo seu trabalho de ontem. E para onde iremos se considerarmos que as vidas têm prazos de validade? Que jogo preverso estaremos a jogar? Sou completamente contra a condenação da vida do outro a uma eficiência produtiva.
Por isso, a arte que quiser ser igual será a arte que é cúmplice e apenas reflete a problemática da eficiência da economia, a linha de produção das candidaturas e a rebeldia sem causa. Não acredito que ficaremos melhor depois disto, mas juntar-me-ei a quem lutar para que eu perceba, mais tarde, que estou enganado.
Texto de Luís Sousa Ferreira
O Luís é diretor do 23 Milhas, projeto cultural do município de Ílhavo. Fundador e diretor artístico do Bons Sons entre 2006 e 2019. Foi comissário do Caminhos do Médio Tejo, programa cultural em rede em 13 municípios, entre 2017 e 2019. Trabalhou no Centro de Estudos de Novas Tendências Artísticas e na experimentadesign. Em 2018, foi Membro do Grupo de Trabalho de Aperfeiçoamento do Modelo de Apoio às Artes e, desde 2019, é Membro do Conselho Consultivo Portugal Expo 2020 Dubai. Co-criador do colectivo cultural-mente.”