Diário de um Médico Intensivista (parte II)
As caras de quem fez 12 horas dentro de fatos e máscaras asfixiantes espelha a dureza física e emocional de quem sabe que os seus saberes valem mais que ouro, valem vidas. Sei de gente que se afastou de filhos pequenos para dizer sim à luta, sei de gente que com familiares na incerteza da vida e da morte dos cuidados intensivos continua na luta.
Estamos na luta. Nós fazemos peito, crescemos, fazemo-nos fortes e enrijecemos o caracter. Mas o desafio cresce connosco, obriga-nos a uma humildade à proporção da fragilidade da vida.
Acordamos de manhã com a força de quem quer conquistar o mundo, mas o dia obriga-nos a questionar vezes demais “quando é que isto acaba?”. De dia para dia está a ficar mais duro, a doença que “mata os velhinhos”, atira para os cuidados intensivos pessoas muito jovens, a exigência aumenta e o número de doentes também. Enquanto cá fora quem nada sabe sobre o assunto conta os ventiladores e as camas de cuidados intensivos, eu vejo as pessoas a ficarem atropeladas pelo trabalho. Toda a gente conta connosco, mas ninguém nos conta a nós. Seremos sempre poucos. É como fazer mais carros, mas não fazer pneus. Mas nós prometemos fazer girar. As caras de quem fez 12 horas dentro de fatos e máscaras asfixiantes espelha a dureza física e emocional de quem sabe que os seus saberes valem mais que ouro, valem vidas. Sei de gente que se afastou de filhos pequenos para dizer sim à luta, sei de gente que com familiares na incerteza da vida e da morte dos cuidados intensivos continua na luta. Para além disso, vejo ainda esta gente a olhar de frente, a olhar de perto este minúsculo monstro que nos assusta, com um carinho e uma humanidade que só cabe no sorriso que reflecte a esperança de todo um país. Com uma viseira e uma máscara pelo meio sente-se magia entre o doente a quem foi possível retirar o ventilador, e quem lhe sussurra ao ouvido “respira com calma”…. “estás a ficar melhor”…. “já podes dizer bom dia”…
Na minha vida já vi muita gente a morrer. Provavelmente demasiada. Mas ainda não me consegui explicar porque é que desta vez dói tanto mais. Como todos nós, também estou mais sensível. Talvez por isso esteja a doer tanto. E porque mais do que nunca em cada doente, consoante a idade, vemos a nossa avozinha querida, a nossa mãe que é o centro do nosso mundo, os nossos irmãos ou os nossos melhores amigos. É isso que vemos em cada doente, nesta doença de todos nós. E por isso dói tanto. Dói muito, mesmo para quem já viu todas as dores. E muitas vezes numa solidão extrema como quem está no cume duma montanha, tomamos decisões de deixar morrer, ou de não tratar, que embora nos pareçam as mais dignas e mais correctas, entram como estacas no nosso coração. Porque mais do que nunca sabemos que são as dores de todos nós.
Esta doença obriga-nos a saber gerir o tempo com uma calma que ninguém quer ter. Não conseguimos enganar o tempo. E só com os dias a passar é que vamos amealhando as alegrias dos que vamos acordando e retirando do ventilador. Toda a vida fizemos isto, mas agora sentimos que são as medalhas para quem está a sofrer em casa a incerteza da vida dos seus familiares, e para todos os profissionais de saúde que sentem que este é um fardo demasiado pesado para se carregar. Mas com o recuperar de alguns doentes em que fazemos questão de os pôr a falar por vídeo-chamadas com as suas famílias, ao ouvir as vozes embargadas de felicidade pura que se expressa em lágrimas, sentimos que as marcas na cara e as noites mal dormidas nunca valeram tanto a pena. E no cansaço e na exaustão sentimo-nos dominados por uma força que nos empurra para mais um dia. “Só mais um dia”. “Um dia de cada vez”. “Força, anda para a frente!” Assim vamos… com a única certeza, que “isto” ainda nem começou. Seguimos fortes. Coesos e solidários. Trabalhamos todos os dias, e estudamos quando podemos, e por fora estamos sempre alegres!
Esta é a nossa luta.
A minha luta, que é tudo o que eu tenho, dedico a todos aqueles que estão no desemprego, que passam fome, e aos que estão em zonas do planeta onde não têm ninguém a lutar por eles.
Precisamos de toda a solidariedade do mundo, dentro e fora do hospital, aquém e além fronteiras. É o maior desafio das nossas vidas. E no final, resume-se ao caracter.
Estamos na luta.
Podes ler aqui também o “Diário de um Médico Intensivista (parte I)”
Texto de Gustavo Carona
O Gustavo tem 39 anos é do Porto e é médico Anestesista e Intensivista. Já fez 13 missões humanitárias e escreveu o livro “O Mundo Precisa de Saber”.