Um isolamento nunca vem só

por Espalha-Factos,    6 Abril, 2020
Um isolamento nunca vem só
Her (2013), filme realizado por Spike Jonze

O isolamento social a que estamos votados – alguns de nós – traz consigo também um isolamento espacial que é igualmente profundo e complexo, e que se tornará mais óbvio com o passar do tempo.

A correlação que se admite existir entre “conectividade” e “progresso” apoia-se numa espécie de idealismo inocente (e perigoso): um e-mail não é uma conversa, um computador não é uma escola, e um quarto não é uma sala de estudo. Por outro lado, essa hiperconectividade está também relacionada com o afastamento entre o ser humano e o espaço físico, não só nas relações sociais a que está habituado, mas também na noção que tem de si próprio e da sua vida pessoal.

Aquilo que se pensa há décadas sobre o isolamento e solidão num mundo urbanizado – “ninguém se sente tão só como quando perdido na multidão metropolitana” – está cada vez mais invertido numa espécie de conectividade social na solidão do lar. Temos estado, e bem, habituados a um distanciamento físico entre o trabalho e a casa, o lazer e a família, o obrigatório, o acessório, e o indispensável. No entanto, fechados em casa, todas estas componentes da vida pessoal – e social – passam a ter que coexistir no espaço, com o risco de também caoticamente intercaladas no tempo. A noção que temos destas duas variáveis aparentemente físicas e lineares, varia muito com o contexto: ao contrário da abundância de espaço e falta de tempo a que estamos habituados, passamos a viver numa falta de espaço e excesso de tempo.

O espaço “exterior” – que no fundo era como que um período de transição de invisível importância no dia-a-dia – é agora uma barreira difícil de transpor legal e emocionalmente: ao ir às compras, despejar o lixo, ou sair para “passeios higiénicos de curta duração” passam a estar associados o receio e algum peso na consciência.

O isolamento social a que julgamos estar sujeitos é, na realidade, um isolamento geográfico: estamos isolados dos outros, de nós próprios, e de todo um mundo do qual nos valemos – mesmo nem sempre tendo essa noção – mais que não seja por estar lá, disponível a qualquer momento.

No entanto, o que este isolamento geográfico perpetua é também uma profunda desigualdade entre os que têm possibilidade de o contornar, na medida do possível, com entretenimento e ensino à distância – ou mesmo pelo espaço que habitam ou a companhia –  e os que estão completamente isolados e entregues a si próprios: os mais velhos, os mais pobres; e, para além destes, aqueles cuja vida laboral não está suspensa e continuam diariamente expostos ao risco, ou os que não sabem se têm trabalho no próximo mês.

Sairemos desta situação não só com outra noção da desigualdade, da valorização laboral de certos sectores “invisíveis”, e da possibilidade de articular esforços em prol de um objetivo comum; mas também a dar outro valor ao significado das nossas interacções pessoais e sociais no e com o espaço.

Quando puder, hei de voltar a apanhar o comboio até Sintra, ler pelo caminho, tomar café e regressar; só pela possibilidade de ir.

Crónica de Henrique Cerqueira, originalmente publicada em Espalha Factos.

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