Não estamos todos no mesmo barco, nunca estivemos
Neste momento, artistas e agentes culturais competem por dinheiro para aceder ao direito a necessidades básicas universais: comer, pagar as contas, manter-se debaixo de um tecto e poder imaginar um possível recomeço depois da pandemia. Entramos todos no piloto automático da resposta, porque se a quarentena nos dá espaço para pensar, também nos traz a consciência que os nossos recursos e a esperança no futuro estão a minguar.
Concursos são competições. Todos estão em risco, mas uns são escolhidos, outros não. Uns são elegíveis e outros não, e os parâmetros chegam a ser monstruosamente irrefutáveis, quase criados por algoritmos que não consideram a diversidade das diferentes condições individuais. E, nisto, uns morrem ou são eliminados, já outros conseguem sobreviver através de provas escritas ou de exercícios de resposta a desafios de criatividade e sobrevivência. E há muitas pessoas que já sabemos todos que não vão ganhar porque a precariedade nunca lhes criou um enquadramento, um lugar, uma inserção possível, uma visibilidade.
Pessoas em governos, cidades e as entidades sob as suas tutelas não podem eticamente decidir vidas através de concursos num estado global de emergência e escolher quem cai e quem pode continuar a andar manco. Também não se podem calar agora e deixar de responder à sua comunidade, negando-lhes cartas de conforto, silenciando-se ou retirando-se do problema, enquanto nos atiram com memórias passadas em streaming, salas de vídeo ou podcasts inspiracionais do mundo velho – mensagens de aguentem aí, inspirem-se, nós continuamos a trabalhar.
Urge estar ON e abrir uma grande conversa que articule o estado, a fundação, o mecenas, o teatro nacional e municipal, o museu, o centro cultural. Vocês são o nosso bem público, o nosso esqueleto, os vossos espaços e projetos são de todos nós, e, quando a crise sanitária passar, vamos precisar de vocês mais do que nunca para apoiarem as vossas comunidades locais, para criar espaço para o outro e, ainda assim, manter o espírito da acção aberto e acordado para um mundo globalmente quebrado.
A emergência impacta todos, empurra todos para a perda. Não estamos todos no mesmo barco, nunca estivemos. Agora mesmo, há os que ganham e os que não ganham e os que não têm condições para poder ganhar nada. E não nos podemos dar ao luxo de perder nem mais uma pessoa, nem excluir alguém por falta de material ou papel. Porque precisamos de todos, agora e amanhã, não podemos aceitar propostas que eliminem o outro, não podemos deixar ninguém para trás.
É urgente pedir respostas possíveis – com respeito e humanidade – que incluam o outro, garantindo mecanismos de acesso a apoio básico emergencial para toda uma classe que está a ser prejudicada. Precisamos de soluções de inclusão, afinal passamos ou não passamos o tempo todo a justificar como praticamos a inclusão social, a dimensão educativa, a distribuição da riqueza e do conhecimento da arte e a sua capacidade de transformação na cultura e no país? Agora é altura de tratar de incluir os profissionais da cultura num conjunto concertado de acções e de valorizar de uma vez por todas a intermitência do trabalho, dando-lhes o estatuto e reconhecimento que que nunca tiveram, como cidadãos contribuintes, pessoas com deveres e direitos. Façam-no por favor, e façam-no já.
É uma revolução o que precisamos, parece um pedido de salvação ou um milagre, mas não, a medida que urge é a garantia do direito a um estatuto profissional que reconheça a contribuição sócio-económica que cada um dá para a sua sociedade. Não precisamos de uma pequena ajuda, precisamos de um apoio sustentável, de uma estrutura, de consideração de primeira necessidade. O nosso problema não é um cancelamento, um adiamento, um paga agora um bocadinho e paga mais tarde, o nosso problema é a nossa mais básica sobrevivência e a nossa capacidade de nos mantermos vivos, empáticos e solidários. Artistas, teatros, festivais, técnicos, profissionais do espectáculo, programadores e produtores têm que ativar agora redes de solidariedade e ajuda e conversar sobre a forma como podem trabalhar juntos no futuro, fazendo um reset nos modos de operação, criação, programação e mediação. E que, nessas conversas, seja garantida a democracia no acesso aos direitos, benefícios e espaços, alterando cânones de poder e da estetização de gosto e da amizade. Porque numa emergência não basta o afecto pelo amigo ou partilhar ideias de bom e de mau, é preciso mesmo todo um projeto de cuidado e amor pelo outro como espécie. E porque teremos que ser outros depois desta tragédia, sem ironias, teremos de abraçar os outros com o que temos e não temos. Por favor, por favor.
Crónica escrita por António Pedro Lopes
Artista e curador independente, António Pedro Lopes é co-director artístico do Tremor, um festival de música que decorre em S. Miguel, desde 2014, e do FABRIC Arts Festival, em Fall River, MA, EUA, festival que renova relações culturais entre Portugal e a diáspora. Como artista de dança e teatro, apresentou-se nos 4 continentes em espetáculos, residências artísticas e workshops. Como curador e agitador cultural, dirigiu festivais e eventos artísticos em Portugal e Europa. Trabalha com artistas, festivais e instituições culturais como consultor, comunicador e diretor artístico. É licenciado em Teatro pela Universidade de Évora e diplomado em coreografia pelo Fórum Dança.