Um admirável hoje novo
Ramalho Eanes relembrava aos menos atentos, numa das passadas noites em direto no canal estatal, que o amor é a peça que nos torna socialmente próximos, solidários e crentes num futuro pouco certo, mas melhor. Torna-se hoje mais evidente que é o amor a grande religião do mundo, aquela que não tem templos ou locais de culto fechados, pois o verdadeiro religioso é-lo em toda a parte.
As nossas rotinas em muito se modificaram, não só pelo confinamento que nos é exigido, mas por hoje termos mais tempo para pensar. Pensar naquilo em que nos tornámos, nos rumos que o mundo parece tomar, ou simplesmente pensar nas saudades daqueles que gostamos e não vemos. A globalização no virar do século parecia ser a maior ponte já vista entre os humanos, permitindo a partilha de conhecimentos, tecnologias, capitais e pessoas. Subitamente assiste-se ao encerramento de fronteiras terrestres e aéreas, as migrações suspendem-se e a ciência gira toda em torno do mesmo, o SARS-CoV2. Nos momentos de crises uns colapsam e outros emergem das cinzas, mas o crescimento é a certeza transversal, ainda que no momento não seja claro aos olhos encobertos pelo breu da incerteza. E como grande parte do crescimento que já teremos vivido, também este ocorre à custa de dor, de lágrimas e de despedidas. Mas no que diz respeito às despedidas, lá voltaremos.
O homem, dizia o meu professor de Filosofia do ensino secundário, é um ser de hábitos, e essa era para ele a sua maior característica. E curiosamente vivemos um momento em que muitos dos nossos hábitos ficaram em suspenso, como se subitamente nos tivéssemos esquecido de estar juntos ou de beber aquele copo de vinho numa tarde ensolarada junto ao mar. É óbvia a necessidade de que os governos tomem as medidas que temos visto serem publicitadas para que um dia mais tarde possamos fazer tudo isto com aqueles que amamos, mas este adiar de vontades é evidentemente impactante no nosso funcionamento. Somos seres de hábitos, mas somos seres sociais e a nossa alimentação é também o diálogo e a convivência com o outro. Com o acesso ilimitado à internet e a difusão massiva do pequeno e do grande ecrã também o verdadeiro diálogo se viu prejudicado. Saramago quando é formalmente consagrado pela academia sueca em 98 diz em jeito de crítica ao olhar cego às tecnologias que hoje “chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante”. Hoje é-nos pedido como nunca antes que tenhamos o nosso semelhante em mente, e escolher ficar em casa é sinal disso mesmo.
Não suportamos a ideia do vazio, vivemos numa sociedade de do things, é trivial estar ocupado, não ter tempo ou viver sugado pela agenda. Agora parados com o céu inteiro nos nossos quartos, entregues à dicotomia do romantismo versus realismo de Eça, já não sabemos o que é poder simplesmente parar, respirar e não fazer nada logo a seguir.
Esperam-nos as mudanças de humor, os lapsos na memória e umas tantas lágrimas em vão. E em solidão. Os nossos velhos já há muito viviam acompanhados somente pelas quatro paredes velhas e de tinta caída. Talvez hoje possamos compreender um pouco melhor o que eles sentem, essa solidão imposta e em nada escolhida.
Volvidos estes parágrafos, como prometido, voltamos às despedidas, que hoje são parcas e mais amargas. Até nas cerimónias fúnebres o vírus se intrometeu, e o adeus é proferido em silêncio. A maioria de nós é mau em despedidas, se bem que o dizer adeus é aquela ciência em que ninguém quer ser profícuo. Despeço-me na certeza de que os tempos por nascer serão melhores. Melhores para os que asseguram a nossa saúde, para os que asseguram os nossos concertos e salas de teatro. Melhores também para uma economia que está hoje gasta e consumida pelo capitalismo. Melhores para ti que lês este texto sozinho aí em casa.
Texto do médico Sérgio Bronze
Igualmente devoto pela medicina como pelas artes. Interno no Hospital Curry Cabral. Instigador do conhecimento, apaixonado pelas tardes de conversa com amigos e tio a tempo inteiro. Nas veias correm hemácias, música, teatro e cinema. Não dispensa de uma dose diária de riso.