Sepúlveda: a história que eu não queria publicar hoje
Ainda jovem, Luis Sepúlveda tinha um sonho. Na altura, o acesso à Biblioteca Nacional da cidade de Santiago (Chile) era inacessível aos menores de idade. E ele sonhava com aquelas estantes gigantes recheadas de livros.
Não demorou muito até o pequeno chileno delinear um plano. Era audaz, ilegal, excitante. Ia distrair a bibliotecária, surripiar o seu velho molho de chaves e fazer uma cópia. Ao anoitecer de uma sexta-feira, já com a chave clandestina na mão, destrancou a outrora inexpugnável portada de madeira antiga, arregalou os olhos e entrou. Passou o fim-de-semana enclausurado na biblioteca, munido de leite, pão de anis e dois maços de cigarros, na companhia silenciosa das palavras devoradas com sofreguidão, num sumptuoso banquete literário.
Ele conta esta história no seu livro “O Poder dos Sonhos”, que apresentou no Porto no Outono de 2006. Estive lá e entrevistei-o. Sorriu quando mencionei esse episódio. Só tínhamos recebido o livro na redação poucos dias antes e ele não estava à espera que já o tivesse lido. E sorriu ainda mais quando nos serviram o café e o apelidei de “argamassa que une os tijolos da manhã”, citando-o. [“Encontro de Amor Num País em Guerra”, 1998]
A conversa prolongou-se, calorosa, inspiradora. Sonhar é normal nos jovens. Mas este, desde cedo, interiorizou que não adianta fazê-lo se não tivermos a audácia de lutar pela concretização dos sonhos. Por mais assustadora ou arriscada que essa luta nos pareça.
Foi essa audácia que lhe deu a coragem para lutar por inúmeros ideais ao longo da sua vida, arriscando-a mais do que uma vez. Foi por causa dessa audácia que conseguiu viver da palavra escrita.
E os escritores, os bons, têm sempre histórias para contar, histórias que nos tocam, que mexem connosco. Nessa tarde, Sepúlveda contou-me uma que nunca mais esqueci. Ilustra bem essa sensibilidade apurada que é típica das pessoas extraordinárias, pois dota-as do condão de impregnar de significado coisas aparentemente simples. Coisas que, ao olhar muitas vezes cínico e árido do quotidiano mortal, são desprovidas de sentido ou importância.
Nas primeiras semanas dos anos que viveu em Hamburgo, na Alemanha, Sepúlveda soube que existia um padeiro no seu bairro. “Dava para ir lá a pé”. A conveniência tornou-o um cliente habitual. No entanto, com o passar do tempo, notou que ia lá por outro motivo. Sentia-se particularmente inspirado sempre que lhe ia comprar pão. “Ele exercia a sua profissão com orgulho, com uma dedicação única e um amor invulgar e isso era contagiante”. Aos 68 anos, o padeiro começou a sentir dores nas mãos. Foi ao médico e foi-lhe diagnosticada uma artrite. Com imenso desgosto, ia ter de abandonar o seu ofício. “Desde pequeno que sempre quis fazer pão para as pessoas. Parte de mim morre ao deixar de o fazer”, disse a Sepúlveda. O escritor meteu-lhe a mão no ombro e pediu-lhe que, no dia em que fechasse a padaria, lhe desse a tábua onde amassava o pão. Quando esse dia chegou, não o deixou limpar a farinha e os restos de pão encrostados na madeira. “Não havia nada a limpar”, disse-me.
Desde então, Sepúlveda passou a trabalhar, a escrever em cima dessa tábua, esse pequeno altar laboral que um dia albergou a devoção de um velho amigo. “É como se estivesse em comunhão com o meu companheiro. Como se prolongasse os seus sonhos”.
Não me lembro do que lhe disse a respeito disso. Mas lembro-me do que desejava ter-lhe dito sobre os seus livros, palavras que foram soltas por outra pessoa, algumas horas depois, já na apresentação do livro.
Timidamente imiscuído na audiência, um jovem dirigiu-se ao escritor e confessou-lhe: “Sabe, quando leio os seus livros, viajo; sinto-me molhado pela chuva, sinto o balancear do autocarro nos caminhos íngremes, sento-me na mesa do café onde conversa com os seus amigos. Sinto-me, eu próprio, um dos seus amigos”.
Nesse dia tinha sido atribuído o Prémio Nobel da Literatura a Orhan Pamuk. Emocionado, Sepúlveda questionou-se sobre o que sentirá um autor quando recebe um prémio dessa importância. Fez uma pequena pausa, fincou os olhos no jovem e disse: “Eu não sei o que sente um autor laureado. Mas a emoção que senti ao ouvir estas palavras de um leitor, seguramente é mais intensa e importante do que qualquer prémio”.
Relembrei e escrevi tudo isto há algumas semanas. Queria publicar no dia que o Luis Sepúlveda melhorasse e regressasse a casa. Queria enviar-lhe o link nesse período de convalescença que se seguiria, e fazê-lo sorrir. Relembrá-lo que ele foi um dos professores que me ensinou a escrever. Que ainda tenho o meu exemplar de “O Velho que Lia Romances de Amor” com a sua assinatura “com afecto”. E que essa sua luta afincada e audaz pelos sonhos continua a inspirar-me após todos estes anos. Esta última frase teria um significado especial tendo em conta a sua recuperação.
Queria fazer isso nessa altura, porque sempre achei uma pena essa tendência vigente das coisas bonitas só serem relembradas quando as pessoas morrem. Detesto ter de o fazer hoje.
No teu livro sobre os sonhos, confessas que esvazias constantemente as estantes da tua biblioteca pessoal e que ofereces os livros a bibliotecas públicas, para quem outros jovens possam sonhar com eles. “Acompanham-me umas quantas centenas de livros que são, na sua maior parte, de amigos”. Neste dia triste, decidi que seria esse o meu humilde tributo. Irei comprar quatro exemplares de obras tuas e doá-las às bibliotecas das cidades onde já vivi: Águeda, Porto, Viseu, Coimbra. Não sou altruísta como tu, não me consigo separar dos que já tenho. Esses só vão sair da prateleira para visitar a tua imortalidade.