Interessa-me particularmente algum activismo
Carta Aberta a um Partido Político que, se existir, me responderá. Interessa-me particularmente algum activismo. Permitam-me que (in)formalize esta conversa de forma fragmentada e desordenada como me habituei a comunicar. Comecemos pelo meio, contudo, como em bom-início, comecemos pelas boas notícias. Numa média construída de forma empírica, cinquenta por cento da população portuguesa ou não vota, ou vota de forma completamente inconsciente e arbitraria. O nosso ambiente político dos últimos quarenta e cinco anos, para não mais recuar, fez-nos o favor de nos legar um grupo heterogéneo (do qual eu tenho feito parte) como audiência desacreditada nas nobres artes da política. Não têm sido esta também a grande arma do “lado-negro”?
Chomsky apelava novamente esta semana, no seu lento silêncio que a sabedoria do tempo lhe herdou, a adesão a um tal de Internacional Progressismo enquanto forma de acção para estes tempos. Estamos em Maio de 2020 e aguardamos pacientemente pela chegada deste generoso guarda-chuva, satisfatoriamente largo para nos acolher a todos. Aprende-se com o outro-lado: usar a união das diferenças.
Espera-se do movimento, que seja capaz de unir as diferenças num mínimo denominador comum de conceitos que, hoje, partilho: democracia, liberdade, esquerda, verde, independência, equilíbrio, justiça, ao qual urge, a meu ver, adicionar: individuo.
Esta peste trouxe-me o tempo da reflexão e a oportunidade de praticar alguma evangelização progressista. Encontra-se muita resistência laxista, principalmente entre aqueles que temos a certeza que conseguimos, com algum trabalho, desviar para a causa do bem-comum. Pedir cliques, partilhas, adesões e assinaturas digitas é hoje activismo elementar. Mas não nos iludamos, não será esse o nosso caminho. Se partilharmos as mesmas armas com o inimigo, mais hábil no manejo da imoralidade, dá-se a confirmação da intuição inicial: perderemos. Mas também não é de ganhar que isto se trata.
A fé, nos meus lados da história, é mais imanente que transcendente. Tenho fé no Rendimento Básico Incondicional. Considero-o, hoje, o grande catalisador de toda a mudança que desejamos. O RBI pela sua transversalidade, coloca o individuo no centro e fala-nos de alguma justiça social, algum equilíbrio, alguma igualdade, algum combate à pobreza, algumas soluções para o imediato – para além de uma genial simplificação burocrática.
Isto é o cenário de um RBI para hoje, peste e pós-peste. A minha fé no RBI não é para hoje, é Utopia. Utopia-real como gostamos de dizer. É o gatilho de um complexo sistema de questões que começam no histórico trabalho e acabam na prosaica felicidade. O RBI enquanto início da Utopia-real.
Se me interessa particularmente algum activismo, não me sobra grande fascínio pelo corporativismo. Aos 36 anos já me resta pouca disponibilidade para principiar no carreirismo partidário. Há que saltar etapas e encontrar um espaço de performance horizontal, voluntária, inter-dependente, mas individualista. Porque hoje, cada um de nós, sozinho, é o seu partido-político. Lipovetsky descreveu-nos desde 1983 e ainda hoje assim o somos. Convocar para a causa comum é trabalhar o guarda-chuva enquanto receptor de células individuais, tentando, a toda a hora, esbater o espectro hierárquico tão necessário à mais elementar estrutura organizativa. O Estado e o Partido Político são hoje, em tempo de peste, estruturas cada vez mais suplicadas. Talvez um dia deixem de o ser. E é para lá chegar que nos movemos.
Todos temos contradições e telhados de vidro. Todos seremos, irremediavelmente, apanhados na infracção. A virtude é a procura da virtude, e não a virtude per-si. Convocando Séneca “quando recrimino os vícios, em primeiro lugar, estou a reprovar os meus próprios. Assim que me for possível, viverei como se deve.”
Da minha parte, serei apanhado a negar, de quando-em-quando, qualquer tipo de autoridade; questionarei e duvidarei de tudo, e de mim próprio; lamentar-me-ei, desacreditado pela condição-humana; praticarei a subversão e a desobediência silenciosa; afastar-me-ei à primeira contrariedade para reflectir; aplaudirei o adversário sempre que o entender; cultivarei, em toda a parte, a minha liberdade de opinião e de acção, principalmente a poética, mas também a panfletária e sobretudo, a irónica.
Por sorte (e virtude), o meu temperamento é contrário à rebelião, priorizando o recolhimento nos momentos de fraqueza.
Mas o vosso partido e eu, partilhamos também um erro básico aprendido na célebre máxima de Baudelaire, “há uma certa glória em ser-se incompreendido”. Saber que se está do lado certo, de forma minoritária contra o-outro dá-nos uma soberba intelectual contrária às desejáveis obrigações de um movimento de ambição colectivista. A glória da incompreensão, da complexidade conceptual, da assunção de um estilo inatingível para legitimar a autonomia do posto é uma arrogância que temos, desde já, de por à parte. Comunicar, bem, é preciso.
Como se deve posicionar um partido político para a pós-peste? Agregador de individualidade. Para os tempos pós-peste, um qualquer braço local da uma eventual Internacional Progressista, precisa de todos convocar, principalmente aqueles cinquenta-por-cento de portugueses que não desejam ser convocados. Para uns, regressaríamos a Platão e na ideia da recusa do Poder. Para outros falaríamos em lesta rotação de cadeiras. Para os restantes articulávamos apenas sobre o serviço-público.
Há tanto para evocar. Tanto para comunicar. O difícil (e a luta-única) é a comunicação. Comunicar uma utopia-real: desenhar modelos, cenários, ambientes que ilustrem a perspectiva utópica num patamar de desejo.
Comunicar que a utopia-real é, repetindo, realizável; que já começamos ontem, há quase dois mil e quinhentos anos; que nos perdemos pelo caminho, mas raramente foi culpa nossa; que recomeçamos hoje, diariamente, e amanhã e depois, mesmo que nos dias de maior desalento, tenhamos a perfeita certeza de que tal não será possível. Podemos transformar em pergunta. Será possível? Voltamos a Chomsky: depende de ti.
Interessa-me particularmente participar na discussão para o pós-peste, nas minhas condições de algum-qualquer equilíbrio de independência/obediência, debaixo de um largo guarda-chuva. Interessa-me particularmente participar de algum activismo para o pós-peste, da mais elementar distribuição panfletária à mais complexa escrita panfletária.
Hoje é dia da Europa. A Europa parece-nos já curta como raio de intervenção para o precisamos de fazer, contra quem precisamos de o fazer, a favor de quem o precisamos de fazer. Por isso, deixo uma pergunta: O que posso fazer para nos ajudar?
Crónica de André Ramos
André Ramos (Viseu, 1984) é Arquitecto pela FAUP. Em 2013 co-fundou a scar-id store e em 2017 a ater by scar-id. Vive e trabalha no eixo Boavista-Cedofeita, na cidade do Porto.