“23 Hours to Kill”: a pele de cordeiro que tão bem assenta a Jerry Seinfeld
Jerry Seinfeld é um caso excecional no panorama da comédia mundial. Mergulhado numa esquisita dualidade — apesar de unanimamente respeitado, a sua consideração oscila entre um pólo que o considera sobrevalorizado, muito por culpa da linguagem clean e da estética observacional, e outro pólo que o considera formidável mas longe da genialidade de nomes globalmente mais apreciados como George Carlin ou até Dave Chappelle.
Mas não se enganem. É tudo pele de cordeiro. A irreverência que normalmente não se associa ao comediante norte-americano deriva, talvez, do seu irrepetível estilo. Criador da famosa série sobre nada, titulada com o seu nome, ganhou a aura de comediante-espelho. Aquele que nos sabe imitar nas mais ínfimas mundanices. Mas o que dizem esses comportamentos sobre nós? Essa análise não é tão translúcida e ingénua.
23 Hours to Kill é uma excelente metoníma da carreira de Jerry. Paira, nesta narrativa, uma visão pessimista sobre a humanidade. Não se trata de um ensaio sobre a moralidade ou um decreto moralista sobre a existência, como muitas vezes fazem outros comediantes marcadamente mais políticos ou filosóficos. A Seinfeld pouco importa as interpretações poéticas.
O que lhe tolda a retórica cerebral e a escrita ritmada e espantosamente acutilante é o fascínio pelo absurdo. Aquele momento em que funcionalmente, sem sabermo-nos influenciados pelas poses sociais ou expectativas emocionais, nos vemos mergulhados numa coisa sem muito sentido vista do exterior. Porque nos atiramos como animais famintos num buffet? Porque nos viciamos no telemóvel? Seinfeld não responde. Nem sequer pensa em fazer isso. Primeiro, porque lhe importa o riso. Segundo, porque em nenhum momento o vemos demarcar-se do rebanho.
É um de nós. Somos um todo absurdo. Os espectadores, o cómico e, porque não dizer, a própria humanidade. Não é à toa que a unanimidade em torno de Seinfeld seja acerca do seu domínio da palavra. Uns veem-no como um superficial observador. Engraçado mas sem sentido. A esses, talvez pudéssemos pedir uma interpretação do primeiro bit deste especial de comédia. A eterna insatisfação do ser humano. A dualidade constante entre querer sair e querer ficar. É engraçada a nossa indecisão. Não é também privilegiada e irritante? É. E por isso é que nos rimos cúmplices.
Dividido em duas fortes componentes narrativas — primeiro, o mundo global e social e, depois, o seu pessoal e irrepetível — o novo especial de Jerry Seinfeld é irrepreensível. Não se espera, até porque tal seria injusto, uma renovação de estilo ou de posição. Seinfeld é assumidamente clássico: ele, um microfone e as coisas que tem para dizer.
É o pacote habitual: a exasperação com este contínuo absurdo, uma exploração dos limites e sentidos das palavras e a capacidade de nos fazer gostar deste lembrete de parvoíce da nossa existência. Menos fulgurante na segunda parte do espetáculo, mas sem nunca perder a mestria dos tempos e domínio do público, Seinfeld deixa-nos mais um testemunho da sua abismal capacidade de ver o mundo numa singela caixa de cereais.