A normalidade
Lentamente, a coisa vai-se compondo. As pessoas saem de casa, primeiro muito a medo, de máscaras e luvas e com álcool suficiente nas malas tacarem fogo a um prédio. Passado algum tempo e porque somos criaturas de hábito fácil, vão deixando cair os acessórios de protecção, um a um, e porque o Verão já pisca o olho e a reclusão caseira já esfrangalhou a réstia de sanidade que vinha de origem, os abraços regressam e o viço vai regressando à plantinha desacostumada da luz e do calor. Lentamente, a normalidade.
Os nossos políticos, descalços do turismo que lhes permitiu sonhar com um aeroporto na margem sul onde aterrassem todos os dias estrangeiros de toda a sorte com os alforjes a bolçar guita, voltam a ter uma corzinha no rosto. Saem à rua e sorriem o sorriso dos visionários: o sonho comanda a vida e em cada esquina um turista abastado, em cada rosto os cifrões reflectidos nos olhos como nos desenhados animados da Disney onde entrasse o Tio Patinhas. Lentamente, a normalidade.
A normalidade acaba por estar para a crise como um buraco insalubre onde dormir está para viver na rua. É a merda a que nos habituámos. A cama de pregos a que chamamos conforto. Pelo que o regresso à normalidade no país da europa onde a taxa de esforço para conseguir meramente viver nos grandes centros urbanos é a maior da Europa devia ser tão saudada como o regresso da peste bubónica. A nossa normalidade antepandémica é acordar todos os dias no sufoco de sermos desapossados do modestíssimo objectivo de podermos habitar um cubículo na cidade onde escolhemos fazer vida e à qual os nossos pais chegaram vindos do êxodo físico e mental de uma ruralidade imposta por decreto. A nossa normalidade é vermos fugir por entre os dedos das mãos o pouquíssimo que conseguimos conquistar desde que o povo saiu à rua de cravo à lapela. A nossa normalidade é uma merda, tem sido uma merda, e deveríamos trocar o contentamento liliputiano de a ela regressar de braços esticados pela inflexibilidade de um “não” incondicional. Não. Não queremos voltar à normalidade, não queremos ser cúmplices do estado-de-coisas a que chegámos para o “bem maior” de uns poucos quantos que por fortuna ou merecimento se sabem aproveitar disto. Não pedimos desculpa pelo egoísmo. Foi a única coisa que nos deixaram crescer.
Lisboa desinquieta-se com a falta de gente a comprar patos de borracha, pastéis de bacalhau com queijo da serra e conservas psicadélicas. As consequências? Pela primeira vez em meia dúzia de anos, aparecem umas casas no mercado a preços quase comportáveis. Pela primeira vez em meia dúzia de anos, a banda sonora oficial de Lisboa, “a marcha do trólei”, deixou de se ouvir de cinco em cinco minutos. A inutilidade pornográfica dos coffe labs noruegueses e dos brunches eco-vego-paleolíticos salta tanto à vista que até faz doer os olhinhos. Pela primeira vez, a cidade parece minimamente habitável. Mas lá de cima garantem-nos que lentamente, a normalidade.
A máquina de propaganda da corja de malfeitores instalada no poder já arrancou. Acenam com a responsabilidade do povo português, com os excelentes resultados – um estatuto, no mínimo, discutível – do confinamento, com clean houses certificadas não se sabe bem como e com o rebuçadinho costumeiro das inúmeras coisas que Portugal tem para oferecer ao turista do primeiro mundo. “Voltem depressa, que temos saudades das vossas carteiras.” Lentamente, a normalidade.
Eu quero é que a normalidade se foda.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.