In Media Res #1 – A existencial necessidade da utopia
In media res é um espaço de ensaio a partir de elementos culturais. Reflexões desprovidas da lógica cronológica. O privilégio da ordem das nossas coisas. Sem pretensão avaliativa ou necessidade de aferição científica. Comprometida, somente, com a turva impressão pessoal do mundo das coisas. In media res porque todos surgimos no meio da História.
A prateleira cimeira da minha estante não me deixa mentir. À direita, os porcos de Orwell, proto-fundadores da ditadura linguística do Grande Irmão. Ao centro, ladeado por Kafka e Cleese, dois máximos do absurdo, mora Zaratustra. Por fim (início na prateleira), a Bíblia. Que não haja equívocos: eu sou um pessimista.
A fina lâmina da minha descrença é, porém, lancinante: não vejo propósito algum nisto de estar vivo. É engraçado o mundo de um pessimista. Acordar, convencer-se do absurdo da existência e tomar um galão. Vestir-se, debruçar-se sobre o paradoxo da existência e ir às compras. Por mais incompreensível que seja esta estranha sensação de vida, há uma certa mecânica na forma de a experienciar. A materialidade das coisas tenta convencer-nos, por via do toque, que é natural e lógico existir, sob tal forma, ali.
Porém, é neste confronto entre a necessidade corriqueira da minha minúscula vida com o espectro transversal da maiúscula Vida, a de todos e a de sempre, que reside a minha angústia. Encontro-me no limbo pouco incisivo da necessidade de um sentido. Estou sempre convicto, nunca certo, da ausência de um projeto inicial e intencional. Estamos à mercê do absurdo.
Contudo, a inevitabilidade do término da minúscula vida não me impede de adoçar o galão. Não há metáforas finas aqui, a não ser pela eventual eloquência da simplicidade, mas se o adoço é porque imagino que, dessa forma, o seu sabor será melhor. É a minha pequena utopia. Melhor, é uma das minhas pequenas utopias. Não tenho só utopias de confeitaria. Estas pequenas utopias, tal qual externalidades em rede, jogam-se umas nas outras e unem-se num corpo uno e íntegro de uma utopia maiúscula: o mundo referencial das minhas ações.
O mundo imaginado que me leva a agir em honra da sua própria concretização. A concepção da faceta individual da verdade não é mais do que o diálogo moral com a nossa utopia. Ajo, impelido pela ânsia de concretizar a idealização, pese embora a racional convicção de que, no fim, tudo foi em vão.
E é aqui que páro, admirado. Saber a vida como uma cacofonia de verdades. Cada ser humano a carregar aos ombros a sua própria utopia. Tanta discussão sobre o sacral significado de tudo e, afinal, a polissemia, individual no prazer mas universal na necessidade, era a resposta à especulação secular.
Fala-se em polissemia existencial, a variação de existir, e o cérebro apressa-se a desenhar um terreno fértil para a concordância. Ai, como nos trai a utopia… Num mundo de homens carregados de utopias, desbrava-se caminho para a inocuidade. A natureza individual da existência humana une-nos. Há, em todos nós, um reduto impenetrável de ser que muitos apelidam de solidão. E, no fundo, todos nos sabemos sós. Essa condição de solidão partilhada une-nos num sentido de espécie. Somos a espécie humana dos solitários pendurados na utopia.
Mas, como consolo talvez antropocêntrico, seremos, por ventura, a única espécie extensível para além do corpo. Os humanos não se encerram nos limites tridimensionais da sua carcaça mas sim na derradeira divisa da projetada utopia individual.
Este laivo de esperança que lançamos no mundo tem tanto de poético como de cruel. O prazer estético da vontade suplanta, por vezes, na percepção do mundo, a verdade imutável do natural curso da maiúscula. Nós vamos cantando mas Roma vai ardendo.
Os porcos hão-de triunfar. Zaratustra entregará o testemunho na mão do seu Super Homem. Deus, para alguns, vai mesmo existir. Já eu acho que me vou ficar pelo galão.