Em Seara alheia
Na madrugada de dia sete para oito deste mês, um grupo de voluntários do Seara — Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara que ocupava um antigo infantário abandonado, em Arroios, e o transformou num centro de apoio de ajuda a pessoas carenciadas, incluindo sem-abrigo, foi surpreendido por um grupo de seguranças privados (dez, segundo os relatos) que de forma agressiva os tentou expulsar do edifício que estava devoluto desde 2018.
Chamada a polícia, esta agiu em força sobre os civis que se manifestavam em frente ao edifício. As forças de segurança, chamadas pela Seara para os proteger dos seguranças privados, acabaram por agir precisamente sobre aqueles que a tinham chamado.
Se as ideias, tendo em conta os factos iniciais, se dividiam, foi aqui que se polarizaram. De um lado quem entendia o trabalho cívico e social que a Seara desenvolvia e se manifestava contra o uso de força num despejo (ilegal) executado por parte de um grupo de seguranças privados mandatados pelos donos do edifício (que, desinteressadamente para os fins do nosso texto, pretendem recuperar o edifício e colocá-lo à venda), bem como contra uma abordagem excessivamente agressiva das forças policiais. Do outro lado está quem defendia um superior direito da propriedade privada dos donos do imóvel em relação à ocupação (também ela obviamente ilegal), bem como a abordagem da polícia ao sucedido e a compreensão pela acção de despejo desenvolvida, sustentando a mesma na demora e custos excessivos de levar a situação para tribunal.
Importa aqui salientar previamente que muitas das vezes se invoca erradamente o Direito à Habitação, consagrado no artigo 65, nº 1 da CRP, como resposta a estes momentos. O artigo 65º da Constituição da República Portuguesa é mais um entre vários de conteúdo programático (chamadas “normas programáticas”) que dão ao legislador as linhas orientadoras fazendo com que não exista, assim, na esfera jurídica dos particulares, um direito fundamental à habitação, como muitas vezes se refere. Existe sim, por parte do legislador – a quem estas normas se destinam de forma primacial – um dever de seguir o consagrado nestes artigos (aos quais se junta, para termos uma melhor ideia, a “gratuitidade do Ensino”, consagrada no artigo 74º, nº 3, alínea a)) como directrizes de actuação futura, um “caminho a ser percorrido”, se assim quisermos chamar.
Se este “direito à habitação” não pode, ou não deve ser invocado para legitimar a posição da Seara, diferente se torna a história se, não só olharmos ao quadro de saúde pública actual, em tempos pandémicos, como olharmos também ao facto de no pacote de medidas excepcionais e temporárias de resposta à crise provocada pela Covid-19 terem sido suspensas “as ações de despejo” e “os procedimentos especiais de despejo” (artigo 7º, nº 10 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março), análogas a esta situação olhando ao sentido e propósito da Lei (impedir que as pessoas fiquem desalojadas numa altura de pandemia à escala mundial). Pensando na essencialidade do trabalho da Seara, retirando pessoas da rua, não as sujeitando à pandemia e impedindo também que haja uma maior contaminação de locais públicos, se calhar já não será tão censurável para alguns a ocupação do imóvel em questão numa altura excepcional como esta, “colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria” os visados, como refere o mesmo diploma.
É importante reter que, do prisma essencial, este despejo é ilegítimo, não havendo qualquer decisão judicial que o sustente. Ainda mais grave se torna quando há medidas específicas no quadro legislativo actual que impedem precisamente esse mesmo despejo. Em circunstância alguma se deve usar meios ilegais para combater a ilegalidade e o fundamento é simples: vivemos num Estado de Direito. Aqui “menos” com “menos” não dá “mais”, sob pena de voltarmos aos tempos do Velho Oeste.
Se conseguirmos olhar para os acontecimentos não havendo qualquer parte de nós que quebre entre defender os donos de um imóvel que poderiam perfeitamente defender os seus direitos exercendo os meios legais convenientes mas que o preferiram fazer usando seguranças privados utilizadores de métodos agressivos ou, por outro lado, um conjunto de pessoas que quiseram, numa altura de pandemia mundial, retirar pessoas que viviam sem condições nas ruas, ocupando para isso um edifício vazio e sobre o qual enviaram emails às entidades competentes avisando dessa questão, então ficámos oficialmente menos humanos após este período fechados em casa.
Da infeliz situação resultam, essencialmente, três pontos sobre os quais deveríamos, portanto, reflectir: 1) o permanente clima conflituoso que vivemos pós-pandemia (a fazer recordar com saudades e ironia quando dizíamos que o covid nos iria fazer mudar enquanto indivíduos – a sociedade demonstra-se hoje em dia mais fracturada e bipolarizada que antes da pandemia); 2) a inoperância dos órgãos de poder público local (Junta de Freguesia e Câmara Municipal) que nada fizeram atempadamente para resolver a situação em tempo útil, destacando-se ainda, por parte da Câmara o vereador com pelouro, Manuel Grilo, que, não só ignora que era um dos responsáveis pela resolução da situação, como ainda se junta ao ecoar de críticas à falta de resposta da Câmara Municipal da qual compõe o executivo (surreal, mas também uma mordaz possível consequência à excessiva burocratização do sistema); 3) e por último, a permanente desconfiança na rapidez e celeridade por parte das pessoas nos órgãos judiciais em dar uma resposta a quem tenta ou deve tentar exercer os seus direitos consagrados por Lei.
No final das contas os verdadeiros responsáveis lavam as mãos mantendo-se impávidos e sempre surpreendidos, enquanto nas ruas a agressividade aumenta e o debate de ideias ganha contornos cada vez mais extremados, também por culpa de outros (ir)responsáveis que alimentam e incendeiam permanentemente a sociedade.