Não podemos perder o foco
Há duas coisas que me parecem urgentes fazer notar no contexto do debate sobre o racismo que tem marcado a atualidade. Por um lado, relembrar que a História é uma disciplina das ciências sociais e que isso tem implicações na forma como a discussão é construída, neste caso concreto, em torno da legitimidade, ou não, da existência de estátuas associadas ao período colonial. Por outro lado, sublinhar a importância de não nos desviarmos do assunto principal e de o conseguirmos discutir com base em argumentos fundamentados que, na maioria das vezes, vão para lá do nosso feed das redes sociais.
Os mais recentes acontecimentos sobre a vandalização e destruição de estátuas associadas ao período colonial, em diversos países, desenterraram um debate que não é de agora e que se centra sobre a legitimidade da existência das mesmas no espaço público, enquanto objeto de glorificação do império. Para esta crónica, interessa-me esse debate, e não a discussão sobre se é, ou não, justificável o que lhes aconteceu. Esse debate segue, aliás, os contornos que seguia aquele com o qual fomos confrontados, há pouco tempo, a propósito da criação do museu dos descobrimentos. Um dos primeiros argumentos, que surge por parte daqueles que apoiam tanto a existência das ditas estátuas como a existência do museu, prende-se com a ideia de que, defender o contrário, é uma tentativa de eliminar os acontecimentos, que essas esculturas e instituições representam, da História.
É aqui que se torna importante relembrar o estatuto de ciência social conferido à disciplina de História. Entre outras coisas, e por oposição às ciências exatas, implica que não existe uma só verdade e, mais importante ainda, que aquilo que se aceita como verdade não elimina as outras verdades existentes. Não significa isto dizer que não existem factos e que estes não são o objeto de estudo da própria disciplina; no entanto, pertencer ao ramo das ciências sociais implica, ainda, que, com base nesses mesmos factos, a história se construa de interpretações, que levam à emergência de conceitos e teorias. Para além disso, e paralelamente ao que acontece nas outras áreas desta mesma ciência, a narrativa dominante, ou por outras palavras, a verdade que se destaca sobre as outras, é escrita por quem tem o poder.
Ora, considerar que quem quer falar e dar a conhecer o outro lado da narrativa quer eliminar acontecimentos da História (ser contra estátuas ou museus que reforçam uma verdade é exatamente impedir que o seu levantamento a continue a perpetuar e, consequentemente, a aniquilar o outro lado do debate), é não entender o processo de divergência inerente à criação de conhecimento nas ciências sociais e não entender, também, que aquilo que vigora é a verdade de quem teve poder para tal. Parte da culpa desta situação é a forma como se ensina História; a aprendizagem com base na memorização impede os alunos de perceberem a génese da própria disciplina por serem, também eles, impedidos de pensar criticamente sobre o que lhes é ensinado.
Em segundo lugar, parece-me importante notar o facto de as redes sociais, e a facilidade com que levantam discussões no espaço público, ter acentuado a perceção de que a nossa opinião sobre certas questões encontra justificação naquilo que sentimos. Quando Rui Rio diz no jornal da noite que “não há racismo na sociedade portuguesa” e que “ainda ficamos é racistas com tantas manifestações anti-racistas”, mostra-nos que as opiniões das caixas de comentários do facebook podem chegar aos ecrãs e ser legitimadas por entrevistas mediadas por jornalistas. Se Rui Rio acha mesmo que não existe racismo na sociedade portuguesa, tem de apresentar as evidências necessárias para suportar a sua posição. Só assim estaremos perante um argumento fundamentado que deve ser base de um debate. Se não tem essas mesmas evidências e, mesmo assim, acha que faz sentido basear-se na sua perceção de homem branco de classe média-alta para tecer afirmações sobre a realidade de homens e mulheres negros e negras na sua maioria pobres, então já entramos no campo da ignorância e esse não me parece aceitável para o líder de um dos maiores partidos da democracia portuguesa.
O que Rio fez foi legitimar uma posição de redes sociais (seriamente e fora delas, com argumentos e factos, ainda não ouvi a sua posição ser defendida) e impedir, de novo, o reconhecimento de um problema e a sua discussão. E tem sido exatamente isso que tem acontecido: fugir do verdadeiro debate para discutir vandalização de estátuas e opiniões infundamentadas de líderes políticos.
Em “Why I’m no Longer Talking to White People About Race”, Reni Eddo-Lodge escrevia “white fear tries to stop this conversation from happening”. No caso específico, referia-se ao movimento Rhodes Must Fall, iniciado em 2015 por estudantes da universidade de Oxford, que lutavam pela remoção da estátua colonial de Cecil Rhodes do campus. No entanto, é também esse mesmo medo branco – da culpa, do fim da glorificação do império, de uma inversão das relações de poder – que impede qualquer uma destas discussões de acontecerem e que conduz a argumentos como o fim da história ou o perigo das manifestações levarem à inversão de posições. Não podemos perder o foco.