A história está cheia de homens
Há um aroma de fim do mundo neste 2020. É um ano que parece condensar em si tudo quanto de mau teria de ser distribuído por pelo menos meia dúzia de anos para ser razoavelmente normal. A grande anomalia negativa – uma pandemia de nome manso – tem vindo a fazer sobressair em cada um de nós os aspectos de personalidade que o dia-a-dia normalmente não exige. As circunstâncias excepcionais revelam as pessoas, sobretudo o seu aspecto moral, e a ética é fundamentalmente imprevisível, por mais que à mesa do café se jurem as acções mais nobres.
Há quem ache que, passados três meses de semi-isolamento bem comportado, já chega. A economia está de rastos. A maior parte das pessoas está a ser obrigada a fazer contas à vida e a racionar (ainda mais) as despesas. Há obviamente uma casta de criaturas que passa por isto sem que as suas finanças sejam minimamente beliscadas. São aqueles cuja conchinha protectora lhes permite entrar e sair de casa pela garagem e ver da cidade apenas o que o percurso do costume lhes mostra através do vidro lateral do banco traseiro. Até nisso esta crise tem sido cruelmente reveladora: a maior parte de nós pode perder o pouco que constituiu como barreira para a indigência num espaço de meia dúzia de meses. Ter uma casa e comida na mesa é um trabalho a tempo inteiro. Não há anos sabáticos para o sobrevivente. Não há almoços grátis. O pouco que somos capazes de fazer numa alegria despreocupada surge nos breves intervalos da nossa fixação apreensiva no futuro e no que ele nos reserva.
Embora o Facebook seja território estupidamente fértil para toda a sorte de especialistas poliédricos – num dia as alterações climáticas, no outro a epidemiologia estatística – a verdade é que imediatamente por baixo de uma espuma muito superficial de dados e citações o que se salta à vista é uma ignorância confrangedora.
Uma ignorância como laivos de bully, que se defende da sua própria insegurança atacando em todas as direcções, como um bêbedo socando o ar em seu redor. Uma ignorância que acha os factos desinteressantes e as explicações insuficientes. Uma ignorância que se foca aquém ou além do que está a acontecer e não no que está a acontecer. Uma ignorância que atira para cima da mesa toda a espécie de conspirações descabeladas.
Uma ignorância que por detrás de qualquer acontecimento vê parte de um plano mais vasto de domínio, mentira e controlo. Não chega ser uma pandemia, foi criada. As máscaras não são apenas uma forma de determos a propagação do vírus, são uma forma de controlo. Um medicamento não é só um medicamento, é uma decisão política. E deste espartilho com que se vestem para interpretar o mundo, zangados e tristes, acusam os restantes de medo infundado.
Andámos séculos para conseguir expurgar da natureza Deus e o diabo e os seus inúmeros agentes. Newton ensinou-nos que as maçãs não caem por nos quererem dizer coisas, mas por causa da gravidade. A medicina contemporânea mostrou-nos que o desrespeito às leis de Deus não causa doenças; as bactérias e vírus sim.
Quanto tempo mais será preciso para desparasitar a realidade dos nossos medos subconscientes? Ou dar-se-á o caso de sermos estruturalmente incapazes de viver sem estarmos sempre a tentar encontrar, mesmo que o facto se apresente pornograficamente nu, o lado escondido das coisas?
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.