O Exame Nacional de Português e o bom senso (ou falta dele)

por Cronista convidado,    6 Julho, 2020
O Exame Nacional de Português e o bom senso (ou falta dele)
Fotografia de Philippe Bout / Unsplash

É preciso avaliar os adolescentes na sua fase final de estudos básicos e secundários. Esta afirmação é profundamente discutível. E eu vou escolher não o fazer, sob pena de ofuscar um tema que, na minha opinião, é bastante mais urgente.

Vamos falar de bom senso nos Exames Nacionais. 

Não de normas, nem de cotações, ou valores decimais. Bom senso. E, para isso, vou escrever numa linguagem simples, pouco eloquente e direcionada sobretudo para os jovens.

Aos 24 anos, depois de uma licenciatura e um mestrado, repeti o exame de Português. E imagine-se, foi uma desilusão.

Há 6 anos, quando fiz o exame, lembro-me de ter pensado que tudo aquilo me parecia despropositado. Eu sabia que queria tirar Comunicação Social, tinha uma boa nota a Português e uma paixão platónica por Fernando Pessoa. Nunca tive especial amor por Luís de Camões, nem pel’Os Lusíadas, (critiquem-me). Então por que raio tinha eu que estudar uma coisa que para mim não tinha qualquer tipo de sentido, quando existiam tantas outras no mesmo programa que me fascinavam?

Bem, adiante, nunca tive resposta a isto.

Na altura, apesar de já ter uma aguçada intuição para questionar as normas e os “adultos”, não era capaz de me questionar muito sobre o porquê de existirem exames. Era única a realidade que conhecia. Se não existissem exames, existiria o quê? O desconhecido nem sempre é fácil de encarar como resposta.

Hoje, depois de fazer o exame nacional, mas sobretudo, hoje, depois de ter feito uma licenciatura, ter escrito uma dissertação e ter tirado um curso profissional tenho bastantes mais recursos para questionar. E por isso, aqui vão algumas questões, na nomenclatura de exame.

Grupo I

1 – Porquê colocar dois excertos de duas obras de Eça de Queirós, sendo que apenas uma era obrigatória no programa? 

Grupo III

2 – Porquê colocar uma apreciação crítica enquanto composição?

Passo a contextualizar as minhas questões. Quando, no programa, existem as duas obras de Eça de Queirós – Os Maias e A Ilustre Casa de Ramires – todas, repito, todas as escolas do país selecionam uma das obras para lecionar. Uma apenas. Porquê não as duas? Porque para o fazerem teriam de abdicar de uma de duas coisas, 1) lecionar em profundidade uma obra de Eça de Queirós, 2) abdicar de qualquer uma das outras obras do programa. Não há tempo. Todas as convicções governamentais por trás dos conteúdos programáticos de literatura portuguesa de 12.º ano são discutivelmente válidas. Agora, aquilo que não é de maneira nenhuma válido é assinalar uma obra como opcional e colocá-la no exame.

O argumento a isto será, “mas era uma pergunta de interpretação, a resposta estava contida no excerto”. Para contextualizar quem não fez, ou sequer olhou, para o exame, existiam duas perguntas, ambas sobre os dois excertos das duas obras, sendo que uma delas pedia para relacionar uma obra com a outra por meio de uma personagem. E é aqui que entra o bom-senso. Poderiam, segundo as normas tê-lo feito? Podiam. Claro, que podiam. Se é decente que o façam? Não, não é. 

A saúde mental ganhou espaço mediático nos últimos meses. Porquê? Porque a pandemia evidenciou as frutas demasiado maduras, que já o estavam há muito tempo, e, arrancando-as da árvore, atirou-as ao chão. Tornando-as mais visíveis do que nunca. Ora, consideremos tudo aquilo que está a acontecer aos adolescentes este ano, a perda da componente social de um ano muito importante (as viagens de finalistas, os bailes, as festas de aniversário de 18 anos têm importância para eles, e dizer que não têm não vai fazer com que deixem de ter), a perda de aulas presenciais, o confinamento obrigatório em casa (que afetou, de uma forma ou outra, todas as pessoas, de todas as idades), entre tudo o resto que todos vivemos. Se os exames já eram motivo de ansiedade e muitos nervos, então este ano, aliados a uma máscara e a várias descargas de gel desinfetante, terão certamente uma maior carga ansiosa. É normal que o tenham. E é no meio de toda esta confusão que decidem colocar uma coisa, que todas as pessoas, incluindo professores, consideram impossível de sair no exame?

Sim, era possível ter respondido àquelas perguntas sem ter lido nenhuma das obras. Mas também é possível, e muito provável, que todos os adolescentes tenham tremido assim que abriram o exame. Que tenham ficado nervosos e confusos e que, acima de tudo, tenham duvidado das suas capacidades. É importante entender que o fator psicológico num exame é extremamente importante. Já todos percebemos que o Iave nunca quis saber disso, nem o governo, pela forma como perpetuam uma avaliação via exame. Aquilo que me custa aceitar é que não só não queiram saber, como tenham decidido agravar esse fator no pior ano deste século. 

Poderia ainda falar sobre a composição, que sempre primou pelo texto de opinião, com uma estrutura clara, argumentativa e, se querem saber, muito útil para todos aqueles que seguem cursos superiores da área das letras e das ciências humanas. Acrescento: o texto de opinião é a estrutura textual que praticamente todos os professores exploram na preparação para o exame. Por isso repito a pergunta: porquê colocar uma apreciação crítica enquanto composição? Que pressupõe uma estrutura completamente diferente daquela a que todos estávamos habituados.

Antes que alguém me responda que este ano havia uma benesse de duas perguntas, sendo que as duas respostas com pior cotação não eram contabilizadas, eu digo: ajudará tantos quanto aqueles que prejudicará. Na verdade, essa “benesse” diminui o número de perguntas, dando mais valor a cada uma delas. Se um aluno tiver muitas perguntas completamente certas, isso ajudará, mas se não for o caso, a ajuda torna-se discutível. 

Poderão ainda dizer-me: os exames servem o propósito de ser uma medida no cálculo da média de entrada para a faculdade. E têm razão. Se o exame for difícil, é difícil para todos. O falha no raciocínio é que o problema aqui não é a nota. Esse é o problema na cabeça dos pais e dos professores, das universidades e das médias. Aqui, o problema é outro. São eles, os adolescentes. É a sua frustração para com um sistema que os regula, a sua insegurança que aumenta, o desânimo, a desmotivação, a ansiedade e o medo de nunca ser capaz de alcançar os sonhos. 

Na minha escola de atores costumam dizer que parte do ensino é testarem-nos para perceber se somos capazes de viver no mundo “lá fora”, o dos grandes. Creio que este ano fizeram o mesmo no ensino secundário. Testaram os adolescentes para perceber se são capazes de viver num mundo onde a saúde mental é a última das preocupações e a primeira das causas de mortalidade juvenil. 

Hoje fiz o exame nacional de Português e hoje tive vergonha do sistema regulador de ensino do meu país. Afinal de contas, não é a educação, a par da liberdade, a ferramenta mais importante da democracia? 

Crónica de Joana Marques Brás
A Joana é alfacinha embora pague 1€85 todas as manhãs. Por agora acredita que contar histórias é o propósito mais bonito que pode dar à sua vida. Enquanto isso não mudar, é o que fará.

 

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