Em caso de dúvida, faz a tua parte
Há uns tempos, durante um jantar com amigos, discutia-se sobre a importância das pessoas tentarem ao máximo viver realizadas, custe o que custar. Independentemente dos riscos que isso possa acarretar, esse é o único caminho possível para dignificar a nossa passagem por esta existência. Perante tamanho óbvio, cada um emitia o seu “hmm-hmm”, validando assim a ideia que estava em cima da mesa.
Isto acaba por ser prática corrente em qualquer conversa. Quando se abordam questões mais profundas, tidas como idealistas ou utópicas, por norma o consenso acaba sempre por existir. As cabeças concordam em uníssono, numa espécie de sintonia intelectual. E quando o bom senso julgava ter levado a melhor, surge a célebre afirmação: “Pois, isso faz todo o sentido, mas a sociedade ainda não está preparada.”
É interessante observar a forma distanciada como nos referimos ao meio no qual estamos inseridos. Existe um “eu” e um “eles”, raramente um “nós”, principalmente no que toca a estas temáticas. As pulsações do ego sobem, à medida que nos convencemos de que somos uns visionários. Ao mesmo tempo em que nos sentimos à frente dos demais, recorremos também a este aparente adiantamento para nos desculpabilizar.
A melhor forma de não remexer nas nossas imperfeições passa por apontar as dos outros. É tentador fazer da sociedade bode expiatório: o plafond de lamentações é ilimitado, nunca iremos ser confrontados de volta e, não menos importante, na maioria das vezes estamos certos — “Até que podíamos melhorar o nosso comportamento, é pena é que a sociedade não esteja preparada.”
O espectro de ocasiões em que isto pode ser observado é bastante vasto, basta escolher. Já vi pessoas a atirarem lixo para o chão, só porque estava tudo sujo à sua volta. No trânsito, como todos se ofendem, talvez seja melhor também fazer o mesmo. No emprego, já que a competição é desenfreada, deixa-me lá por também as garras de fora. Enfim, isto aplica-se a mais situações do que seria ideal. No entanto, se falarmos com cada uma destas pessoas, elas provavelmente vão-nos dizer que não são más pessoas, apenas não tiveram escolha. Será?
O poder de decidir é algo que nunca se dissocia de nós. Por mais pequena que seja a margem, existe sempre forma de fazer uma escolha em detrimento de outra. Em última análise, só depende de cada um a forma como reage a algo. Desculpar-nos com os outros é chão que já deu uvas. Talvez fosse bem melhor darmos antes ouvidos à nossa consciência. No final do dia, sentimo-nos no caminho correcto? Estamos focados em ser pessoas boas? Quem somos nós quando ninguém está a olhar?
O rapper português Deau tem um verso que, de forma brilhante, resume bem qual deveria ser a nossa atitude: “Não consigo mudar o mundo, a realidade é dura. Mas se eu mudar o meu quintal, dou outro ar à minha rua.” Posto isto, de que estamos à espera? Quantas ervas daninhas ainda temos por arrancar? Quantas sementes estão por lançar à terra? A melhor forma de mudar o ambiente passa completamente por cada um estimar o seu quintal.
Em caso de dúvida, faz a tua parte. O mundo não nos deve rigorosamente nada. A sociedade em que estamos inseridos pouco se importa com o que deixámos de fazer por causa dela. Nunca irá saber quanta verdade ficou por viver só porque nos julgávamos adiantados. Preocupa-te com o que depende de ti, com o que está ao teu alcance, com tudo o que podes impactar. Não te lamentes pelos outros não serem como tu achas que deviam ser.
O melhor de tudo isto é que não precisas de autorização para começar. Olha para ti e pensa por ti. A vontade de fazeres a tua parte tem de partir de ti.
Crónica de Manuel Clemente
Autor dos livros “Se Sentes, Não Hesites” e “Em Caso de Dúvida, Escolhe o que te faz Feliz”