A empatia no país dos hipócritas
A comoção do país dos hipócritas em torno da morte de dezenas de animais, fruto de um incêndio que atingiu as instalações de uma dessas pessoas que não suporta ver animais na rua, é o exemplo paradigmático de como muitos de nós andamos com as prioridades trocadas. Atentem que quando falo no país dos hipócritas não estou a afirmar que somos um país de hipócritas, antes que existe neste país um outro que pertence aos hipócritas e que ganha cada vez mais terreno. Existe um país que se está a deixar levar pelo caminho das causas do imediatismo, das soluções fáceis e irreflectidas, pela moda que se nos apresenta no momento. A questão dos animais domésticos e de companhia é complexa e não deve ser tratada com a ligeireza com a qual muitos têm lidado com esta problemática, não obstante, juntam-se às centenas em vigílias, organizam-se em autênticas máfias organizadas em perseguição a eventuais culpados de alguma coisa, julgados em plenário popular. Partem carrinhas e insultam pessoas.
É curiosa, porém, a falta de empatia com a morte de Bruno Candé, assassinado a tiro no meio da rua sem dó nem piedade. Não há para mim qualquer dúvida, se Bruno fosse branco ainda estaria vivo, junto dos seus filhos e a fazer o seu teatro, mas não era e a cor da sua pela ditou a sentença de morte. A própria comunicação social que se apressou a condenar o sucedido em Santo Tirso, concedendo horas e horas de reportagem em directo e em diferido, dando espaço a todos quantos tivessem uma opinião a dar contra quem recolhia os animais, tem agora dificuldade em caracterizar este crime como um crime racista, procura não ferir susceptibilidades utilizando a sempre útil expressão “alegadamente” para quando não nos queremos comprometer com nada. A sociedade não se compromete com a luta anti-racista porque não se considera racista e isso é um grande problema. Diziam pelas redes sociais que se o homicida tivesse matado a cadela o país já se tinha levantado em grande alvoroço e, infelizmente, parece-me verdade. Não há qualquer moral em defender animais quando o sangue não ferve perante um crime de ódio racial como o que assistimos em plena luz do dia no Portugal do século XXI. Não podemos desligar umas coisas das outras porque tudo está interligado, não nos podemos considerar altamente sofisticados e pós-modernos porque temos seis gatos em casa e defendemos que são seres sensitivos, mas depois nos calámos perante a morte de um de nós. É insano e incompreensível, não é este o país onde quero viver.
É preciso reconhecer mais o outro que vive connosco, aqui mesmo na porta ao lado da nossa e ter empatia por ele e não transformar o desgosto crónico pela humanidade em empatia por outros seres que não nós, olvidando o facto de que também nós somos responsáveis pela humanidade de que fazemos parte. Bruno Candé foi assassinado, muitos outros são marginalizados, mas se o racismo é uma das expressões mais violentas das desigualdades sociais, também a desigualdade per si mata e, mais uma vez, não andamos suficientemente atentos. Existem milhões de portugueses que vivem estes dias com cortes nos seus rendimentos, seja fruto do Lay Off, seja mesmo pelo facto de terem ficado sem emprego e a malta sai à rua por causa dos animais? Desculpem, mas isto anda tudo trocado, dirão os mais radicais que os animais sentem como as pessoas, porém, deixo essa conversa para a comunidade científica que melhor que eu poderá elucidar e elencar as devidas diferenças.
A grande questão a colocar são as lutas que escolhemos, aquelas que valem mesmo a pena serem travadas e, na minha modesta opinião, enquanto a cor da pele ditar a sentença de morte a alguém, ou o dinheiro que tenho no bolso ditar a vida que podemos ter e não aquela a que temos direito, nenhum governo deveria ter descanso.
Crónica de Fernando Teixeira
Jurista encartado em Coimbra, nascido em Trás-os-Montes há 25 anos e autor do livro “Ponto de Fuga” e de outros que estejam por vir.