É só uma disciplina
A resposta ao manifesto que pedia que a disciplina de cidadania e desenvolvimento fosse facultativa, foi respondida com uma implacável certeza da sua necessidade.
O problema essencial da resposta é que a um recuo responde com a defesa deste sistema, atrasando a discussão da sua necessária reforma.
Há outras subtilezas com as quais não me revejo, por exemplo, via melhor empregue o “nos” onde refere “os”: “O futuro da Terra, em termos sociais e ambientais, depende da formação de cidadãs e cidadãos com competências e valores não apenas para compreender o mundo que [n]os rodeia, mas também para procurar soluções.”.
Mas também peca por duas ingenuidades, parece-me. Por um lado, considera que a disciplina em causa não é ideológica, embora esteja inserida numa escola que também tem uma “organização reguladora e condicionadora dos indivíduos a um padrão de obediência” (ver artigo), por outro lado que a introdução da disciplina responde aos desafios expostos.
As salas, as aulas, as turmas, as classes, as disciplinas, os programas, os horários, os testes, a disposição do professor com os alunos virados para si, as avaliações parecem descrever uma escola do presente, e se isto é verdade, também é verdade que o é há mais de dois séculos. Com uma escola assim já decorreram muitas histórias, além do dia-a-dia opressor, nunca se encontrou solução para os problemas que parecem querer resolver-se e quantos cenários miseráveis não corrigimos? Alguns agudizados, e quantos cenários miseráveis criamos? Michel Foucault, no Vigiar e Punir, dá uma boa perspectiva sobre as lógicas de domínio que existem na escola e para que é que isso serve (podem ver aqui alguns excertos de dois capítulos em torno da escola).
Parece-me que a estratégia deverá ser falar de educação preconizando um molde diferente e não reproduzindo o atual. Ou alguém já conseguiu demonstrar a pedagogia das características das características que acima salientei?
A minha intenção com isto não é deitar abaixo por deitar abaixo, afinal “saber complicar, é uma prova de amor” como diz o Samuel Úria, e, de facto, devem ser construídas pontes intra comunidade para que se procurem alternativas e para que se responda universalmente aos problemas de hoje.
Não me parece correto achar que um ensino autoritário, competitivo, excludente, penalizador, cego na diferença, embora com uma disciplina dentro dele possa levar à construção de pessoas com as capacidades necessárias para os desafios que temos em mãos e com respeito pelo individual e coletivo. Contar o bem do estado, escondendo o seu patrocínio em guerras, por exemplo, que contar o bem do direito e não do seu cariz opressor, seja o caminho que nos levará à emancipação individual e coletiva.
Portanto, tenho algumas reservas com esta predeterminação de conteúdos, não porque ache que haja permanente maldade, mas porque penso que é a partir de cada um de nós que aprendemos e que só aprendemos quando queremos. Afinal qual é o problema de cada um de nós encontrar um espaço colectivo onde nos possamos desenvolver de acordo com as nossas vontades, motivações, interesses, sonhos e por aí adiante? Porquê é que tem que ser o contrário disso para demasiada gente?
“Ao compartimentar os saberes, não se favorece a percepção de que o conhecimento resulta dos contributos de várias áreas do saber. Pior, devido à existência de provas finais e exames, incentivam-se os sujeitos a socorrer-se da memória para corresponder a esses momentos de avaliação externa”, isto não é bem educação, conhecimento, cultura. Esta ideia é reprodutora de uma cultura dominante, não produtora de conhecimento e que nega a agência às escolas do desenvolvimento do conhecimento e da cultura das comunidades.
Gostava que na escola também fosse possível aprendizagem onde haja comunicação dialógica, onde não haja doutrinação, dentro de comunidades de aprendizagens (ao invés das disciplinas, das aulas, das turmas, das classes) e onde a intersecção entre áreas do saber é um estágio.
Crónica de Pedro Selas
Ativista e licenciado em Direito.