Quadro de miséria: a arte dos miseráveis
Se escreverem no motor de busca do Google “quadro de miséria”, curiosamente, a grande parte dos resultados irá direcionar-vos para o site da TVI, mais concretamente para o programa “Você na TV”, tal foram as vezes que a frase foi repetida nas várias emissões do programa. Comprovem vocês mesmos. Eu espero. Pronto, ele há coisa engraçadas, não há?
A verdade é que nos habituamos a ouvir e a usar a expressão “quadro de miséria” quando a intenção é falar de um cenário miserável, mas sem deixar de fora uma certa ideia de arte no que estamos a observar. A TVI, mais do que ser um canal de televisão, habitou-nos, pelo menos nos últimos tempos, a ser uma galeria onde é possível encontrar expostos vários quadros deste tipo. E tem se aperfeiçoado nessa arte de ser miserável, diga-se.
No dia 9 de setembro, quarta-feira, para promover o seu programa — Boom — Marco Horácio surge ao som da música “La Bomba”, de Alan Duffy, pintado de negro, com uma peruca a imitar uma cabeleireira afro, e um traje que julgo ser africano. Digo julgo porque hoje em dia é difícil perceber o que é que pertence a quem. E atentem neste alinhamento de acontecimentos. Numa espécie de mesa redonda Manuel Luís Goucha e os comentadores de serviço — Ana Arrebentinha, Flávio Furtado, e Cinha Jardim — comentavam o ingresso de Ricardo Quaresma no Vitória de Guimarães. E durante a conversa Cinha diz o seguinte: “Gosto muito de Ricardo Quaresma como homem, pai, profissional, apesar de ser da raça cigana”. E de seguida perde-se em justificações patetas, dizendo que os portugueses são uma etnia e que os ciganos são uma raça por serem raçudos. “Ó, filha não te enterres mais”, adverte o Goucha. E pouco depois surge Marco Horácio. Ora digam-me, se não estamos perante um belo quadro. De miséria
Não é de hoje que se recorre às caricaturas deste tipo para fazer “humor” na televisão portuguesa, optando-se por ignorar a história. Afinal de contas, os maus são os outros. E enquanto se prepara a execução destes momentos ninguém consegue alcançar o quão errado é, exatamente por essa desculpa enraizada e, diga-se, esfarrapada. E os que não concordam com esta forma de caricaturar, são confrontados com um conjunto de argumentos tão poucochinhos e pobres como o “humor” em questão. Coloco entre aspas porque fazer humor representando estereótipos que já estão no imaginário geral, recorrendo à uma técnica outrora usada num contexto de segregação, para diminuir e achincalhar quem não podia ter voz não chega a ser humor. E mais, não deixa de ser irónico (ou não!) que tanto os negros, como os ciganos, para se sentirem, algumas vezes, representados na televisão portuguesa tenham de esperar que alguém se faça passar por eles. Usando as suas vestes, os seus cabelos, o seu sotaque E ainda há quem diga que deviam sentir-se gratos por se tratar de uma homenagem.
De que vale autonomearmo-nos de antirracistas, fazer capas de revistas sobre o assunto, se depois, em momentos destes, deixamos escapar a ideia de que nem tudo é para ser levado a sério? É urgente educar. Não pode haver quem continue a achar isto normal.
Sobre o Marco Horácio: conheço-o mal, privamos um par de vezes no contexto profissional, e não tenho razões de queixa, pelo contrário. Portanto, não caio na tentação de dizer que é uma pessoa racista, mas desconfio sempre de quem abraça este tipo de “desafio” (quem trabalha na televisão adora dizer que adora um bom desafio). Tal como desconfio de uma equipa que aprova, valida, produz, sem que ninguém consiga perceber o que está em causa. Bem sei que nem sempre é fácil, fruto da tendência em normalizar o que de errado acontece neste país. Mas o problema não está na cabeça dos outros!,
Após a tímida indignação que o sucedido gerou — é sempre mais difícil quando acontece dentro de portas — Marco Horácio respondeu a uma mensagem privada que lhe foi enviada por alguém descontente, da seguinte forma: “Em 2020 ainda há alguém que seja fundamentalista e não tenha sentido de humor!! Vê o momento desde o início, vê o videoclipe original e vê o contexto da brincadeira antes de me vires acusar seja do que for! Bom dia.”
Tive o cuidado de fazer o que sugere Marco Horácio, antes sequer de ter conhecimento desta troca de mensagens, porque já conheço os automatismos de quem se tenta defender deste tipo de situação, em que se vê envolvido por escolha própria. Vi o momento desde o início, tal como sugeriu, e a primeira coisa que me despertou foi desconforto e constrangimento de ver o Goucha gritar várias vezes “bomba”, à espera que o colega de canal percebesse a deixa. De seguida fui ver o videoclipe original e constatei que o autor da canção é, pasme-se, careca. Isso não seria relevante, caso o tipo com o “bronze à Algarve” — como é dito a dada altura no programa, para o deleite do resto do painel que se ri com tamanha referência, não o usasse como um argumento de defesa. A não ser que, claro, estivesse a imitar as bailarinas que surgem no vídeo original a dançar. Estas sim com uma cabeleira do tipo a que ostenta Marco Horácio.
Fala ainda em contexto — o famoso contexto. Por mais voltas que dê à cabeça, não encontro uma razão lógica para Marco Horácio surgir daquela forma em 2020 — não percebo porque é que os anos têm de resultar em evolução apenas para alguns.
E por fim, coloca as culpas nos fundamentalistas que não têm sentido de humor. Porque, lá está, a culpa é e será sempre dos outros. Porque, afinal, “é sempre tão fácil mantermos a calma e a fleuma, até o sentido de humor, em relação àquilo que não nos diz respeito.” (Fernanda Câncio, in Guia para vitimas sensatas; DN)
E duvido que os tais outros alguma vez terão capacidade intelectual, ou um sentido de humor suficientemente apurado, para perceber o humor por trás de um tipo com a cara pintada de negro, com as vestes que representam todo um continente, ignorando, isso sim, todo o contexto histórico que um momento daqueles representa. E quando o público exige mais, sente-se atacado. Em suma, se fazes blackface. Chamam-te a atenção, queixas-te dizendo que te querem limitar, desculpa informar-te, mas já és limitado.
Certamente que me vão dizer que estou a exagerar, que não é por aqui. Mas já estou habituado a isso. Afinal de contas, se ser miserável é uma arte, lidar com os miseráveis também.
(Uma palavra de apreço e um abraço para Eduardo Madeira. Nunca é tarde para estar do lado certo.)
Crónica de Carlos Manuel Pereira
Carlos Manuel Pereira, até ver. Licenciado em Ciência Política no ISCTE, mestrado em “discussões sobre o racismo” no Twitter. Humorista, pelo menos eles dizem que tenho piada e eu acredito neles. Tenho uma rubrica de humor da RDP África – NA CORDA BAMBA. E amigo dos seus amigos porque ser amigo dos seus inimigos é parvo.