Em tempos de guerra, as Canções do Pós-Guerra de Samuel Úria
Em abril, Samuel Úria divulgava o título do novo disco, produzido mais uma vez por Miguel Ferreira. O lançamento estava previsto para esse mês, com concertos de apresentação na Casa da Música, no Porto, e no Tivoli, em Lisboa. Do nada, o país mudou e, claro, o lançamento das Canções do Pós-Guerra teve de mudar com ele. Em comunicado, lia-se: “Um título premonitório? Talvez… Dizem que a arte tem essa capacidade, esse recurso de preceder os acontecimentos. Neste caso, esta ‘guerra’ será, como sempre, interior e espiritual. Uma vez mais, Samuel Úria obriga-nos a olhar para dentro. Não num exercício egocêntrico, mas antes como parte de um caminho de necessária partilha”.
Temos todos a marca de água das revoluções. / Somos pais do que é divergente, e mais que as mães. – “Aos Pós”
Premonitório, sim, e visionário também, talvez. É que esta guerra não tem espingardas como armas, mas tem uma pandemia, a pandemia que tanto mudou e continua a mudar o mundo. Tem pensamentos, tem palavras, tem inseguranças e tem medo. A guerra que vivemos pode ser bem diferente da guerra que Úria tinha em mente quando escreveu o disco, é certo, mas não deixa de assentar que nem uma luva — ou uma máscara, quiçá — na realidade atual. Estamos a atravessar tempos negros e sombrios, preenchidos por dúvidas, divisões e sentimentos de insignificância e impotência face a tudo isto. Mas há esperança, há sempre algo que nos move e nos motiva a seguir em frente.
E eis que o fim se entranhou / Ansioso / Nos relógios. // Nem sei meus anos de cor, / Só os nossos: / Estamos novos. – “Cedo”
Canções do Pós-Guerra é um pouco assim. Tem canções frenéticas mas também tem canções pacíficas, tem incertezas mas também tem certezas, tem medo mas também tem segurança, tem escuridão mas também tem luz. É um disco que questiona tudo e nada, interrogando-se sobre o que fica para lá de e entre os dois. Em Nem lhe tocava, O Grande Medo do Pequeno Mundo e Carga de Ombro, o cantautor habituou-nos tanto a canções mais em jeito de “Pés de Roque Enrole” (para citar o ciclo de concertos especial do ano passado), como a canções tão delicadas que soam ao roçar de uma pena. O seu talento para a escrita de letras é único, brincando com as palavras como poucos o fazem em Portugal. Deixa um pouco de si em cada canção, embora permita sempre o espaço para que cada ouvinte deixe um pouco de si também. É impossível não nos identificarmos com estas letras e estas canções.
Findou-se o tique involuntário, / Ninguém sorri no cemitério. / Versado no jogo do sério, / Fica aquém. – “Fica Aquém”
O disco que é editado hoje não é exceção à regra. Canções do Pós-Guerra deixa-nos vulneráveis, simultaneamente arrepiados e com vontade de dar uso aos movimentos de anca que aprendemos com o mestre Samuel ao longo dos anos. Há rock e há folk, há um cheirinho de pop e de blues, num conjunto heterogéneo e eclético tão típico de Úria. Com 32 minutos e ao longo de 9 canções, o músico traz, invariavelmente, um pouco de tudo o que lhe vai na alma. E, mesmo assim, com tanta palavra e tanta nota musical, acabamos com a sensação de que apenas temos um pequeno vislumbre do que lhe passa pela mente.
A hora avançou / Quando o Sol se desfez. / Quando o Sol se desfez. – “O Tempo Aprazado”
Sabemos que a crítica social está sempre presente e a política também, paralelas aos dilemas da vida e às questões existenciais. Tudo sempre revestido dos artifícios habituais, de simbologias, subtextos e recursos literários quase crípticos. Samuel Úria é um músico que passa a mensagem sem passar as ideias concretas — como, aliás, grande parte dos bons letristas —, deixando sempre muito espaço para o mistério e para a imaginação. O próprio já o disse e a situação mantém-se: a sua principal intenção é a de ser honesto, consigo próprio e com os outros. Se quem ouve entende o verdadeiro significado por trás das palavras, isso já é outra questão (normalmente é uma questão com resposta negativa). O importante é que as pessoas se relacionem, que vejam as músicas da sua própria perspetiva, que encontrem os detalhes que as deixam com a sensação de que poderiam ter sido escritas por si, que aquelas histórias afinal até poderiam ser suas. Afinal, a música é uma língua universal por alguma razão.
Sempre me faltam palavras para dar; / Uso-as para me encobrir. – “O Muro”
Ao longo das últimas semanas, ouvi Canções do Pós-Guerra enquanto cozinhava, enquanto trabalhava, enquanto olhava pelas janelas de comboios sem ver as paisagens. Perdida no disco. Não sei quantas vezes já o ouvi, mas devem ter sido umas dezenas. E a cada vez que o ouço, gosto dele ainda um pouco mais. Talvez pela honestidade, talvez pela forma direta como está construído, talvez por esta ou aquela nota ou esta ou aquela palavra. Talvez por ter de tudo um pouco. Talvez por ser belíssimo e por transmitir uma sensação de inquietude que, paradoxalmente, traz consigo uma paz absoluta.
Treva e luz, qualquer cor condiz? – “Guerra e Paz”
Este novo álbum tem um trabalho instrumental perfeito do início ao fim. “Temos” (a primeira palavra proferida) a rockalhada revolucionária (“Aos Pós”) que abre estas Canções, onde fica bem explícito que “Somos filhos dos novos tempos. Ontem, nunca mais!”. Temos o dueto excecional com Monday (Catarina Falcão) acompanhado por um dedilhar de guitarra sublime — “Cedo” é, sem dúvida, um dos pontos altos. Temos a escalada sonora que é “Fica Aquém”, canção que saiu em novembro e em dezembro entrou diretamente na lista das melhores canções nacionais de 2019 para a CCA. Temos uma balada de cortar a respiração (“Tempo Aprazado”), com uma sequência instrumental que se destaca instantaneamente, bem como o coro que se lhe segue.
Eu contenho-te dentro do peito, / Somos exoesqueleto um do outro – “A Contenção”
Temos “O Muro”, mais uma canção lenta e belíssima — de entre as várias canções belíssimas (em apenas 9, heim!). Temos uma “Guerra e Paz” que nada deve ter a ver com Tolstói (ou que se calhar tudo tem a ver com Tolstói) e que arrepia a espinha até aos mais insensíveis, com uma combinação de vozes que, ouvida ao vivo, deve ser uma experiência verdadeiramente única. Temos uma canção com um ritmo mais rápido e alegre — “segue em frente, segue em frente, segue em frente” – que põe toda a gente a dar ao pézinho e a entoar “A Contenção” sem contenção alguma. Temos mais uma pseudo-balada (“As Traves”), na qual Úria entoa as sílabas diretamente no nosso interior sem pedir permissão, acompanhado de mais um coro arrepiante e das guitarras de Miguel Araújo. Temos uma canção de embalar (“Menina”) que dá a esta jornada interior um final esperançoso e relaxado.
Quem diria que um dia era eu? // Tenho a vista cansada / De tanto apontar para longe de mim – “As Traves”
A acompanhar o disco vem também um filme, filmado já em plena pandemia da COVID-19. Com realização e edição de Joana Linda, foi construído com base num conceito relativamente simples mas muitíssimo bem executado. Monday, Joana Espadinha, Cláudia Pascoal e Alex D’Alva Teixeira foram os convidados para figurar por momentos nesta produção visual que acompanha Úria pelas ruas da capital em pleno tempo de guerra, ao ritmo das canções que escreveu no pré-guerra e que hoje são lançadas já a pensar no Pós.
E nós estamos quase a ser lar. // A cama onde espero anda a encurtar – / Sou eu que já nem caibo em mim. – “Menina”
Canções do Pós-Guerra é indubitavelmente o trabalho mais maturo e coeso de Samuel Úria. É um disco de autoprocura e de autodescoberta, passando pela indefinição mas terminando com a aceitação. Está repleto de melodias belíssimas e de letras intrincadas que nos fazem questionar toda a existência com elas. Já lá vão 4 anos desde Carga de Ombro e este longa-duração era há muito esperado; finalmente chegou, trazendo consigo tudo o que prometia, “com o som de uma espera a ter fim.”