Elogio de dois palermas
Está mais que provada a eficácia das duplas disfuncionais na comédia. Não é que juntar duas pessoas completamente diferentes leve automaticamente a momentos hilariantes, mas já é um óptimo ponto de partida. E dessa premissa surgiram Bucha & Estica (Laurel & Hardy), que se opõem pela diferença de personalidade como pela coisa mais óbvia (o peso); Tom & Jerry, o gato e o rato que colidem como manda o milenar antagonismo, numa espiral de torturas que, em desenho animado, ninguém leva a mal; e “The Odd Couple”, a peça de Neil Simon que virou filme e série(s), que coloca dois homens divorciados com hábitos diferentes a partilhar casa: um é atinado e muito higiénico, e o outro é o cliché do homem despreocupado com todas as lides domésticas.
A principal fonte cómica deste tipo de situação está no choque que se cria entre personagens antagónicas – até porque, como nos diz toda a comédia, só há graça quando há problema, e mais graça há quanto mais esse problema for explorado aprofundadamente. Até porque, se fosse tudo perfeito, não haveria muitos motivos para rir. O riso pode não servir para nada mais do que aliviar as dores da realidade, mas isso já é qualquer coisa.
Nos últimos meses, tenho descoberto alguns filmes de uma outra dupla: Abbott & Costello, que apesar de conhecidíssima, ainda hoje, nos states, parece caída no esquecimento por estas terras lusas. Mesmo que os EUA nos façam engolir a sua cultura a torto e a direito, ficou muita coisa para trás que até é bem interessante – não só no cinema como na música e na literatura. Outros ícones da comédia cinematográfica e televisiva do país desapareceram por completo do imaginário português: W.C. Fields, Jackie Gleason, Don Knotts… e muitos outros.
Apesar disso, nos seus tempos de maior glória (que ao contrário do habitual nestas nossas paragens lusitanas, aconteceu em vida dos artistas), os filmes de Bud Abbott e Lou Costello foram uma presença regular nos cinemas portugueses durante anos. Os “grandes” do cinema americano contemporâneo são fãs (Tarantino até coloca um dos clássicos da dupla entre as suas primeiras influências). Abbott & Costello são outro exemplo da eficácia das duplas em comédia, já que representam os tais opostos, numa variação de Bucha & Estica como se tivessem trocado de papéis, e juntado a eles uma porção de piadas ditas a um ritmo alucinante: Bud é o tipo alto, aparentemente sério mas completamente chico-esperto e mauzinho para o seu amigo, sempre disposto a colocá-lo em maus lençóis para seu proveito, enquanto Lou é o baixinho gorducho com uma voz engraçada, facilmente reconhecível por ser medroso, inconveniente e algo descarado.
Tem sido uma descoberta interessante. Pouco ou nada sabia sobre eles antes de ter adquirido uma caixa com 24 das suas aventuras de celulóide (é uma dose excessiva para um leigo na matéria, mas foi uma pechincha!). Vira algumas das suas rábulas mais conhecidas, como “Who’s On First?”, que eles reinterpretaram no teatro e nos dois ecrãs – o grande e o pequeno – ao longo dos anos. Se nunca espreitaram, aconselho que o façam, assim como a sequela com Jimmy Fallon, Billy Crystal e Jerry Seinfeld. Vi-a em variadíssimas versões (uma delas num dos filmes) e em variações à volta do mesmo tipo de comédia de enganos, e em todas funciona de forma impecável. A premissa é simples: imaginem que os jogadores de uma equipa de basebol se chamam “Quem”, “O Quê” e “Eu Não Sei”. É um clássico absoluto da comédia, um sketch de pendor absurdo que funciona pela mais parva simplicidade.
O humor de Abbott & Costello é físico e verbal, com o caos a ser provocado das mais variadas formas, quer seja com tartes ou com coisas mais sofisticadas, como discos de vinil, quer seja com falhas de compreensão, “trocadalhos do carilho” ou referências meta – em “Abbott & Costello Meet The Invisible Man”, são incontáveis os momentos em que ele dialoga com o espectador, e a maioria é hilariante.
Mas os filmes não são, pelo que tenho visto, na sua maioria, propriamente brilhantes. Valem por alguns segmentos em que conseguimos encontrar motivos para dar fortes gargalhadas. Estas desventuras da dupla sofrem um pouco daquele toque leve e familiar que encontramos, por exemplo, nas comédias dos irmãos Marx para a MGM: finda a era da Paramount onde reinava, nas suas aventuras, a mais pura anarquia, Irving Thalberg convidou-os a fazerem o mesmo no seu estúdio, mas aumentando as doses da historieta romântica que envolve outras personagens, com os irmãos a servirem para ajudar o herói. Os Marx não perderam a piada com isso, até porque alguns dos seus melhores momentos foram na MGM (“A Night at the Opera” é uma jóia absoluta). Mas como refere o crítico Roger Ebert, nessa e nas outras produções MGM é fácil fazer fast forward em todas as partes com os outros actores porque, em boa verdade, não são aquilo que queremos ver, coisa que não acontecia, por exemplo, em “Duck Soup”, a última produção para a Paramount.
O equilíbrio entre a narrativa e o humor em Abbott & Costelo dá ainda um passo mais à frente nesse lado family friendly, ao qual se juntam muitas vezes uns momentos musicais com algumas estrelas da época, tornando alguns dos filmes em sucessões de atracções divertidas (em que os dois comediantes também fazem um “número”) com mais ou menos impacto. Mas não podemos negar o valor dos seus filmes por causa disso, até porque alguns têm muita graça, mesmo com a tal história (por vezes excessiva) onde tudo acaba bem e que amacia todo o humor, reduzindo os dois actores, não sempre mas em várias ocasiões, a simples sidekicks das personagens sérias, os “tontinhos” que vão ajudar quem realmente importa.
A duração dos filmes não passa geralmente a hora e meia, e são sempre muito divertidos mesmo que variem na qualidade, porque encontramos sempre qualquer coisa que chama a atenção. Em “Abbott & Costello Meet the Keystone Cops”, homenagem sentida ao mundo da comédia muda que decerto influenciou a dupla (até conta com um cameo do lendário Mack Sennett), todo o segmento final é de antologia: uma perseguição com o frame rate acelerado, com tudo o que associamos ao slapstick das curtas dos tais polícias, bem como o trabalho de Keaton, Chaplin, Lloyd e tantos outros. Só esse momento já vale todo o filme que é, até, um dos menos interessantes entre os dez que já pude ver.
Ou seja, os filmes de Abbott & Costello valem, em muitas ocasiões, pelas partes e não pelo todo. Mas alguns sobressaem por conseguirem ser mais do que isso. Entre os que me pareceram mais conseguidos e equilibrados entre as piadas e os sketches com a narrativa e as outras personagens, em que o valor dos cómicos serve também para o desenrolar da história, destaco dois: um deles, “Hold That Ghost”, está muito próximo de ser um grande filme. Tem verdadeiros achados de comédia que mostram o quão geniais eles conseguiam ser, na junção do humor slapstick e as piadas proferidas a grande velocidade. Aqui, a dupla é usada para mais do que “pobres diabos com graça”, e são bem utilizados na narrativa. É uma das várias “comédias de terror” que eles fizeram, em que os sustos provocados numa casa assombrada criam alguns momentos de comédia antológica: a real cagufa de Lou perante o fantasma que assola a mansão abandonada e as várias tentativas falhadas para avisar Bud proporcionam alguns bons risos. O restante elenco, mais “sério”, também funciona de maneira exemplar: Joan Davis, uma comediante muito popular na década de 40, faz uma magnífica parelha com Lou, criando alguns momentos memoráveis como a famosa cena com uma vela que anda de um lado para o outro de uma mesa, e que provoca arrepios a ambos.
O outro filme que quero destacar é o melhor dos que já pude descobrir, e o único que realmente contraria essa tendência de ter só boas partes mas não um todo consistente. É mesmo uma grande comédia, sem tirar nem pôr, e uma rara ocasião em que todos os elementos foram conjugados da melhor maneira possível, sem participações especiais de estrelas das cantigas da época mas com um elenco formidável, e com um foco único e exclusivo na história (que, para variar, é mesmo interessante e não está ali para encher), e no ambiente em que se desenvolve: “Who Done It?” merece ser colocado no panteão dos grandes clássicos do cinema para rir.
É uma homenagem à rádio e aos programas de mistério que, nos anos 40, pululavam nas emissoras de todo o mundo, e acima de tudo, é um filme muito, mas muito engraçado. Parecia que eu tinha ficado com um parafuso a menos, porque estava a rir-me constantemente dos detalhes mais ridículos. Tem um ritmo alucinante e bem construído, e os vários gags de Abbott & Costello sucedem-se sem parar – inclui até uma meta-referência a “Who’s On First”! É daqueles filmes que merece ser visto uma segunda vez, mas sem legendas a acompanhar, só para se poder ficar atento a todos os movimentos e pequenos subentendidos que se perdem com a presença dessas pequenas letras.
Esta tem sido, assim, uma viagem de boas descobertas com uma grande surpresa, que foi este “Who Done It?”. Mas sempre me diverti e encontrei alguma coisa especial nos dez filmes que entretanto fui vendo. E torna-se injusto fazer uma avaliação de toda a obra de dois dos comediantes mais influentes do século XX nos EUA através de uma mera dezena de filmes, sendo que alguns dos que são considerados os melhores são os que ainda não consegui deitar as mãos (como por exemplo “The Time Of Their Lives”, que mistura fantasia e ficção científica e, segundo alguns críticos, é uma das investidas mais arrojadas da dupla), mas estas linhas servem mais para vos sugerir que, no final de um dia cansativo e com alguns percalços ou desilusões profissionais/pessoais pelo meio, sabe bem chegar a casa e desfrutar da companhia agradável de Abbott & Costello.