Um viajante é livre?
Há certas afirmações ou perguntas com as quais um viajante é frequentemente confrontado. “Que VIDA de sonho!”, “És meio maluco!”, “Sentes medo?”, “Como é que a tua família reage?”, entre várias outras. Geralmente, como rodam à volta destas e outras quatro ou cinco questões, tenho resposta para todas, que atiro mais ou menos sem pensar, por tanto já ter pensado nisso. Mas há uma que, apesar de responder também mais ou menos da mesma maneira, deixa-me sempre um grãozinho na engrenagem do cérebro que escreve estas linhas.
“És livre!”, dizem-me, tantas vezes.
Sou?
Sofro da feliz condição de ter o tipo de mente que dá catorze voltas sobre si mesma, fica oirada sem cair ao chão, mas sem ficar exactamente no sítio onde começou, deixando-me sem saber se isso é bom ou mau. Pois temo não saber com precisão o que significa ser-se livre, querendo isto dizer que quando me dizem que o sou, em vez de pensar se o sou ou não, perco-me a tentar perceber o que isso é.
A liberdade pode ser fazermos o que queremos. Mas, assumindo que não escolhemos o que queremos, não seremos então reféns dos pensamentos que nos atravessam sem os termos convidado? Vou pôr de parte o facto de não termos mão neles e pensar no que é isso de fazermos o que queremos. Eu quero viajar. E viajo. Mas quando viajo, muitas vezes faço o que não quero. Tenho de dizer que estou vivo às pessoas que me querem bem e a quem bem eu quero. Não sou, então, totalmente livre. Mas será que, ao mesmo tempo, não serei livre na mesma, pois o que eu realmente quero é que essas pessoas não se sintam tristes por não saberem de mim? Das catorze voltas que a minha mente dá ao pensar em algumas coisas, esta volta equivale a um terço de uma. A maior parte delas oira-me tanto que não sei onde param.
Mas estas, aquelas mais simples, não chegam a perder-me. Fica escuro, mas consigo ver onde estou.
Às vezes, num país religioso, como quase todos os países não-ocidentais que visito, quase quero dizer que sim, que acredito em deus, para me poupar a iminente evangelização. Não faço, então, o que quero. Mas não quero mentir e não minto. Então faço o que quero – não mentir. Talvez completemos uma volta aqui. Não caí mas, se tento parar, o meu campo de visão fica indisposto. Pois isto leva-me a crer que, ou sou sempre livre, ou nunca o sou, e isso é uma dualidade que tenho dificuldade em computar.
Agarro-me a uma corda para não cair ao chão e tentar parar com estas voltas. “Não compliques, Pedro, tu sabes o que as pessoas querem dizer (sei?).”
Sem voltas nem rodopios, permito-me pensar no conceito de liberdade mais comum possível.
Liberdade.
Não, Pedro, não penses em condicionalismos genéticos, sócio-económicos, temporais, isto é uma coisa simples. É a liberdade como as outras pessoas a vêem. Tem-na?
Quase. Reduzir-me-ei ao mais básico e comum, àquilo que sei que me querem dizer e àquela diferença que sinto entre o meu estar em viagem e o meu estar em casa sentado à mesa a escrever uma coisa qualquer.
Okay, okay…
Vou separar-me da lógica por uns momentos, vou esquecer-me desta mente que gira sem parar e aceitar que sim. Por vezes sinto-me livre. Por vezes sinto o óbvio que existe na eternidade do futuro enquanto sinto o nada que significa aquilo que faço a seguir. Por vezes entendo a minha total insignificância nesta passagem que me atribui uma consciência, uma ilusão de self, e aí, nesses momentos, sinto-me livre. Tenho dificuldade em saber se isso é real, pois o meu sentimento não dita. Mas o meu sentimento sente-se prazenteiramente à chuva numa estrada qualquer sem saber se vai chegar ao destino. O meu sentimento, pobre sentimento, não sabe bem onde vai dormir tantas vezes nem como lá vai chegar. O meu sentimento veste-se de uma indefinição que, por momentos, se atreve a ser real.
O mundo não sou eu. Mas eu não consigo deixar de ser eu. E o mundo que vejo é a partir de mim. Mas, por vezes, o mundo que eu vejo é aquilo que eu sou.
E aí sim, sinto-me livre.
Se o sinto é porque o sou?
Não dês mais voltas, Pedro.