O feminino nos insultos
Creio que não questionamos suficientemente as expressões que utilizamos no dia a dia. Não questionamos a sua origem e, não a questionando, não nos interrogamos também sobre o tom pejorativo que podem abarcar e as pessoas que podem ofender. Contra mim falo, digo-as ainda algumas vezes, digo-as para gozar e fico-me por aí, pela superfície, pela ligeireza do seu uso, não me apercebendo o que realmente quererão dizer e não me apercebendo de que impedem uma evolução que se devia ter como necessária na fala, na lide e no saber estar com as outras pessoas. Desculpo-me dizendo que é na brincadeira e isso traz-me a impunidade interior de que preciso. Ou não, pois muitas das vezes que as disse – essas frases que na minha cabeça eram inocentes -, sempre desconheci as lutas interiores de quem as ouvia e de que forma o que lhes disse lhes ecoou na cabeça.
Uma dessas expressões é “não sejas c*nas”. “C*na” é, além do órgão sexual feminino, alguém que, neste contexto, demonstra sentimentos, ou tem medo ou receio de algo, e com isto queremos que deixe de ser sensível e demonstre toda a sua “masculinidade” e “virilidade”, porque só estas pessoas estão aptas a ultrapassar grandes obstáculos na vida, os homens, certo? Errado. Ainda assim, isto propaga-se e perpetua-se no nosso discurso fácil que sempre nos foi incutido e que sempre foi passando de pessoa para pessoa e geração em geração através de conversas despreocupadas – sempre despreocupadas -, não olhando à volta, vendo as mulheres que lutam para chegar a cargos de topo, que lutam por ter voz no espaço público de debate e que ganham em média menos que os homens nas exactas funções (aquela parte do discurso “feito”, mas que importa recordar para contextualizar).
Faça-se um exercício muito simples e pesquise-se a palavra “maricas” (deixo aqui para evitar o trabalho extra e o transtorno da pesquisa), também proferida tantas vezes de forma desempoeirada nas mesmas circunstâncias que o “conas”. Este tipo de expressões como “não sejas conas”, ou “não sejas maricas” vem apenas sustentar a visão da mulher enquanto elemento fraco, sem capacidade e sem destreza para um sem número de actividades ao qual se possa conotar todo este tipo de afirmações perniciosas. Mas não são as únicas. Os insultos que temos como adquiridos no nosso vasto vocabulário, são, maioritariamente, frases ou expressões onde a mulher é usada para insultar o homem em vez dele diretamente. No “filho da p*ta”, tal como no “vai para a c*na da tua mãe”, ofende-se em primeiro plano a mãe para chegar ao destinatário do insulto (trago à colação, o parente além fronteiras “motherfucker” de ambos os casos). Por último, o cabrão é um homem que ignora ter sido traído pela mulher, ou consente essa traição, como se o adultério só a ele estivesse destinado e ser uma falha enquanto homem, um pé em falso na sua masculinidade, ter “deixado” isso acontecer. Este contínuo não repensar das expressões “insultuosas”, sobretudo as que acarretam uma grande dose de machismo, leva a um errado sentimento de impunidade de velhos hábitos como o do piropo, que não é mais que uma frase brejeira, ordinária e vulgar 99% das vezes.
São muitos anos a inferiorizar as mulheres, valendo-se as reminiscências de uma sociedade que começou por estar organizada pela presença da mulher em casa e do homem a “ganhar o dinheiro”, com trabalhos pesados ou não, e a versar sobre a organização política, de onde também a mulher estava afastada. Esses anos que foram passando foram criando vícios de pensamento traduzidos em ditos e expressões que nunca fizeram sentido, mas hoje menos ainda. Certamente que os arautos da defesa dos bons costumes, da tradição e da defesa do piropo a património cultural (porque tudo é Cultura, dirão, e esta “não se muda”) e do “politicamente incorrecto” correrão em defesa da sua amada “liberdade de expressão”. Não se trata disso, nem há por onde fugir: trata-se de civismo, de ter um discurso mais educado, mais polido e mais empático e de sermos mais exigentes connosco próprios.
A mudança começará quando nos apercebermos de práticas completamente retrógradas que mantemos dentro de uma sociedade que se quer colectivamente evoluída e progressista, onde os padrões éticos devem ser a sua base de sustentação. É um exercício de cidadania exigirmos mais de nós mesmos não protelando estes actos agressivos e demonstrativos de masculinidade tóxica através destes comportamentos que não são mais do que o resultado de uma educação e cultura a que somos sujeitos e vamos perpetuando ao longo do tempo através de “ensinamentos”, mensagens, conversas, ditos populares, piropos, músicas pimbas ordinárias e tantas outras acções que podem e devem ser questionadas e mudadas quando há razões para isso, como entendo ser o caso.