O comentador desejável
Há muitos anos que não tenho televisão; quer dizer, tenho um ecrã de não sei quantas polegadas ao qual está acoplada uma box android por onde entra o mundo dos filmes e séries. Bem sei que a televisão mudou muito. Dos dois canais da minha adolescência passámos para os 160 do pacote mínimo oferecido pelos principais fornecedores de internet. Um sujeito já não é obrigado a regular o seu horário pelos programas que quer ver; a qualquer hora pode recuar no tempo e assistir à final do Roland Garros como esta foi transmitida originalmente. A televisão, para poder competir com a internet e a sua infinidade de conteúdos, modernizou-se – não é estranho que a essa modernização corresponda uma tendência para mimetizar a forma da internet.
A modernização também chegou ao estranho mundo do comentário televiso. Nos poucos e longínquos anos em que fui jovem, os comentadores vinham à televisão na qualidade de especialistas. Eram veterinários a falar da encefalopatia espongiforme nas vacas, engenheiros agrónomos a avisar para o míldio da vinha e o Nuno Rogeiro a falar de tudo quanto acontecia lá fora, pela razão de pescar algum inglês e de ter uma parabólica a bombar na CNN vinte e quatro horas por dia.
Os critérios para se ser comentador, hoje em dia, “achataram a curva”, se me é permitido a metáfora epidemiológica da moda. É necessário saber muito menos de muito mais coisas. O comentador contemporâneo ideal consegue num momento discorrer sobre uma crise humanitária no médio oriente e, no momento seguinte, alinhavar um diagnóstico relativo aos problemas de balneário no Boavista. Tudo isto, claro está, sem que nos últimos vinte anos se tenha assistido a qualquer incremento na capacidade de processamento de dados do humano. O milagre não decorre do facto de o comentador contemporâneo estar de algum modo melhor apetrechado para a complexidade do mundo e dos seus desafios. O comentador contemporâneo não estuda mais do que o seu vetusto predecessor, não o ultrapassa em largueza ou profundidade de saber. O comentador contemporâneo é apenas o decalque contemporâneo da nossa precisão de conhecimento, e esta, por via das transformações inerentes à súbita abundância na disponibilidade de tudo quanto pode ser estudado, tem-se vindo a tornar cada vez mais competente na acumulação ecléctica de banalidades. O nosso medo de perder pitada e de sermos socialmente humilhados na confissão de que pouco ou nada sabemos do cinema russo dos anos setenta ou das mais recentes técnicas de recorte genético acaba por nos manipular a adquirir uma vaga notícia de conhecimento que passa pela coisa em si. Este conhecimento em pó raramente é desmascarado pelo simples motivo de raramente um especialista o auscultar. Os especialistas, além de raros, são cada vez menos apreciados. São símbolos indesejáveis da nossa ampla mediocridade, são recordatórios pelos quais antevemos agoniados o longo percurso que é necessário para que um sujeito seja capaz de assomar a cabeça à tona do oceano de banalidades em que normalmente navega.
O comentador contemporâneo é ainda, muito especialmente na política, capaz de equacionar e resolver em abstracto todos os problemas que, em concreto, não foi capaz de desenlaçar. Muitos dos comentadores de alto gabarito na televisão portuguesa, com honras de programas semanais com nomes pomposos, nos quais se prestam as explicar às criancinhas deste lado do ecrã a incompetência ou a excelência daqueles que nos governam, fizeram parte de um ou mais dos executivos responsáveis pelo estado-de-coisas a que chegámos. A tudo isto se prestam sem qualquer assomo de decoro pela contradição inerente a explicar uma calamidade de que historicamente fizeram parte. O púlpito do comentário é uma espécie de água baptismal através da qual se redime ou se esquece todo um passado lamacento.
Sigam-me para mais receitas.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.