Intimidade em tempos de pandemia
Num destes dias cruzei-me com uma senhora junto aos cacifos do ginásio que habitualmente frequento. Ela deixou cair uma moeda e eu, instintivamente, baixei-me para a apanhar, mas parei mesmo antes de lhe tocar. Paralisei a poucos centímetros (milímetros?) da moeda, com a mão já estendida, e apercebi-me do que estava a fazer. A essa escassa distância da tal moeda lembrei-me da pandemia e na desconfiança que a senhora podia ter por alguém tocar em algo que era seu. Então, por ela, parei e perguntei-lhe se queria que eu apanhasse a moeda. Quero que entendam o quão ridículo é estar literalmente quase a agarrar na moeda, olhar para cima e perguntar isto na mesma. É possível que ela tenha achado que eu estava a gozar, mas não estava. Ela respondeu-me então com um “deixe estar” e apanhou-a. O que eu fiquei sem saber é se ela a apanhou por mim, por ela, ou por não ter compreendido porque hesitei.
Algo que era tão banal ou tão automático como nos baixarmos para apanhar algo a alguém, já não é. Enquanto ela apanhava a maldita moeda só me saiu um “nos dias de hoje nunca se sabe”. Tenho quase a certeza que isto soou mal. Se tivesse sido dirigido a mim soar-me-ia. Mas não era suposto. Eu não estava a desconfiar, a frase é que tinha ficado a meio. Queria ter dito que “nos dias de hoje não sei se está à vontade para que eu pegue numa coisa sua”. Continuo sem saber, mas juro que foi esta a frase que idealizei na minha cabeça antes de ter dito aquela estupidez. Bloqueei porque era uma situação nova.
Sempre considerei muito estranho aquele ritual de certas pessoas que ao se aproximarem de um grupo de conhecidos lhes dizem “tomem um olá geral, sintam-se cumprimentados”. Respeito e compreendo que existam pessoas que não querem ou não têm paciência para cumprimentar toda a gente, mas gosto do típico passou-bem, do abraço e do beijo na cara como formas primordiais de cumprimento. Esse contacto físico ou proximidade nunca me tinham causado desconforto, até agora, em que deixou de ser normal.
Penso sobre os efeitos a curto, médio e longo prazo que a pandemia da Covid-19 poderá trazer não só à proximidade mas também à confiança entre as pessoas. De um momento para o outro ficámos com medo de estarmos próximos de alguém, de falarmos ao ouvido, de dar um simples abraço ou de nos disponibilizarmos a qualquer momento de maior intimidade não planeada. Até o simples cumprimento diário já vem por receita médica em forma de “toque de cotovelos”. Isto tudo numa sociedade cada vez mais individualista tem tudo para se potenciar ao máximo. Somos, também, a geração em que a saúde mental ganha uma importância que até agora nunca teve. Primeiro, porque estamos cada vez mais educados e informados para o tema, e o segundo, que decorre deste primeiro, é que começarmos agora a ter esse maior conhecimento leva-nos a mais diagnósticos e alarmismo sobre pessoas próximas, o que nos torna, em certa medida, mais empáticos para com o tema.
Nestes últimos meses fogem-nos de conta os casos que devido ao isolamento social aumentaram ou se potenciaram. Não é por acaso. Nem tão pouco podemos ignorar alguns idosos que dantes já eram esquecidos nos lares ou nos hospitais e que perderam nestes tempos a pouca companhia que tinham dos seus familiares que muito ocupados com a sua vida não têm tempo para eles. Nunca temos tempo para os outros, mas somos os primeiros a depender de validação alheia. Acredito que somos, por natureza, um ser social e comunitário. Precisamos de falar, de partilhar, de tocar e de ver ao vivo. Quando dizemos “deixa-me ver” estamos a mentir. Não queremos só ver, também queremos tocar e sentir desconforto por agora estarmos obrigados a falar maioritariamente através de pequenos ecrãs é um óptimo sinal. É sinal de que não achamos normal esta distância.
Pergunto-me sobre o abandono e sobre o esquecimento. A bondade e a empatia, que muitas vezes vinham de pequenos gestos como apanhar algo a alguém que deixou cair, de ajudar outra pessoa a levar as compras ou de segurar alguém com dificuldades na locomoção são agora repensados, reponderados e evitados muitas das vezes, devido a esta doença que deixará marcas durante anos. Em tempos de luvas e máscara, a que “distanciamento social” ficaremos uns dos outros? E o amor? E o beijo na boca? E tudo isto entre profissionais de saúde e os seus pares, que não o são, e todos os dias chegam a casa com medo de chegarem (mal) acompanhados? Se há vírus que é sinal dos nossos tempos é este, um vírus que promove o afastamento. Que a cura venha em breve.