Cancel Culture: as plásticas do pensamento
“An artist is a creature driven by demons. He doesn’t know why they choose him and he’s usually too busy to wonder why.”
William Faulkner
A internet é um terreno fértil para semear tendências que, felizmente, têm tanto de absurdo como de efémero. Engolir colheradas de canela, saltar de varandas de hotel para piscinas, cancelar cultura, há de tudo um pouco.
Há algumas noites, tropecei numa situação que sintetiza perfeitamente a composição desse último movimento, internacionalmente conhecido como “cancel culture”. Será abusivo juntá-lo na mesma frase com os outros? Depende do ponto de vista; talvez até seja o mais nocivo de todos. Mas já lá iremos. Para já, vamos debruçar-nos sobre a sua composição: Polietileno tereftalato. Por outras palavras: plástico. Plástico moldável.
Aconteceu com uma jovem universitária que nem sequer conheço, mas com quem partilho círculos culturais digitais. Essa jovem, uma acérrima defensora do “cancel culture”, estava toda entusiasmada a elogiar a série distópica “The Handmaid’s Tale”.
Eu vi a alusão e sorri. Provavelmente, ela desconhece que a autora do livro em que a série se baseia, Margaret Atwood, assinou uma carta aberta este Verão onde denuncia esse movimento como “intolerante”, “dogmático”, “censurador” e adverso à democracia, à arte e à liberdade do debate e do pensamento que, sublinhe-se, costumam andar de mãos dadas. Acrescente-se que essa carta foi assinada por mais de centena e meia de autores e pensadores, incluindo Salman Rushdie, que sabe melhor do que ninguém o que é sentir o peso da censura ideológica em cima, e Noam Chomsky que dispensa apresentações em matérias do pensamento.
Numa era onde todos têm uma janela para o mundo, através da qual querem ser bem vistos, esforçam-se desesperada e obsessivamente por recriar uma vivência asséptica, onde tudo tem de ser ou parecer imaculado. Mas isso não basta. Promovem também vistorias nas vivências dos outros, especialmente os mais mediáticos. Vasculham sofregamente a sua vida, as suas entrevistas antigas, a sua presença online, em busca de uma frase encardida (ou que possa ser interpretada como encardida) que possam utilizar como mote para a lapidação pública de cancelamento. Assim que a encontram, apedrejam. E arremessam olhares censuradores a quem não agarra numa pedra.
Essa é uma das naturezas plásticas desse “movimento”. A extrema superficialidade com que se tenta cingir toda a complexidade de uma existência humana a uma frase perdida no tempo ou uma mera publicação numa rede social. Ou até uma não publicação. “Se não estás comigo, estás contra mim”, é uma máxima vigente.
Mas a plasticidade não fica por aqui. Estes canceladores parecem envergar opiniões esculpidas a bisturi. É comum darem pequenos retoques de cultura nos seus perfis – hoje um lifting metódico de Stanislavski, amanhã, quem sabe, uma rinoplastia stencil de Banksy – e por isso aparentam ser cultos mas, no entanto – e quase paradoxalmente – denotam total desconhecimento das vicissitudes da criação artística.
A arte nunca será arte se algemada a moralismos, dogmas ou concessões ou se refreada por outras camisas-de-força devidamente esterilizadas. O artista não tem de ser forçosamente uma fonte de virtudes. Mas que raio de ideia e de imposição é essa? É um ser idiossincrático, rege-se pelo seu espírito, nunca pelo consenso. Muitas vezes, a criação vem da luta com as suas imperfeições intrínsecas, com os seus demónios. Há um homem/mulher e há a sua arte. No dia em que não houver uma distinção demarcada entre ambos, é o dia em que a genuína arte, na sua forma mais crua e primordial, deixará de existir. Consumir-se-á um produto processado e etiquetado pelas vigências do pensamento. Num invólucro transparente, plástico.
Isto atinge patamares de refinada ironia. Há um antagonismo efervescente no âmago dos acólitos deste movimento e, por mais que ele se manifeste, os tipos nem dão conta disso. Ignoram-no, entretidos a enfeitar as suas janelas para o mundo com citações, quadros, poemas, filmes ou canções de escritores, pintores, poetas, cineastas ou músicos que eram/são “verdadeiros facínoras” nas suas vidas pessoais. E que se tivessem sido “cancelados”, quantas obras, quantas correntes artísticas, quantas influências teriam sido canceladas no processo?
Mas o que interessa responder a essa pergunta?
O que interessa é citar Bukowski, fica sempre bem na fotografia. Pouco importa se ele era retratado como um misógino incurável. Talvez seja melhor queimar os seus livros. Ou os de Hemingway, conhecido pelas suas crises de alcoolismo e pelo seu temperamento intragável. Perguntem às quatro esposas se ele era fácil de aturar. (A pergunta é retórica, já morreram todas, ok?).
E porque não rasgar os escritos de Simone de Beauvoir? Costumam citá-la tantas vezes, sabiam que ela se envolveu sexualmente com alunas menores de idade quando dava aulas no Liceu Molière? E que chegou a ser suspensa por isso em 1939? Ok, qual rasgamos primeiro? Qual tal o “Segundo Sexo”? Foi banido na Espanha franquista e chegou a ser contrabandeado e lido em segredo por mulheres ávidas das suas palavras sobre emancipação, mas há que rasgar, a sua desvirtude pessoal está acima da sua virtude artística.
(Estou a ficar embriagado de ironia)
Já agora, não parem por aqui. Rasguem também as peças de teatro de Bertold Brecht, pois o dramaturgo alemão partilhou com o ensaísta Walter Benjamin que reconhecia “imensos méritos” ao regime de Stalin. É apenas um genocida responsável por milhões de mortes, nada de mais.
Mas já chega de papel, vamos para as telas. Caravaggio era um homem extremamente violento, tinha constantes ataques de fúria e chegou mesmo a matar um homem. Assassino! Retirem os seus quadros do the Met, do Louvre, da National Gallery e do Prado.
E já que estão no museu de Madrid, recolham os quadros de Salvador Dalí, porque o sacana do pervertido era conhecido por convencer casais amigos ou conhecidos a fazerem sexo à sua frente, para ele se poder masturbar. Qué asco! Então e o Rodin, que era bígamo à socapa? Derrubem tudo o que ele esculpiu! Cancelem estes malditos pecadores carnais!
Já agora, que se tapem todas as pinturas de Gauguin, que abandonou a mulher e os cinco filhos para ir para o Tahiti, onde dormiu com adolescentes nativas com quem partilhava cigarros e sífilis enquanto procurava a inspiração que mudaria para sempre o uso da cor na pintura pós-impressionista.
E que mais ninguém se atreva sequer a olhar para uma pintura de Degas! Esse velhaco era antissemita, acreditava que os judeus “não eram confiáveis” e cortou laços com todos os amigos dessa religião. Como é possível que ainda ninguém tenha dado conta que ele tem esculturas e pinturas no Israel Museum, em Jerusalém? Motins na Terra Santa, já!
Então e o Picasso? Cubismo para aqui, Guernica para acolá, mas sabem que, de acordo com a própria neta, a “destruição psicológica” das mulheres com quem ele se envolvia fazia parte do seu processo criativo? Das sete mulheres com quem teve relacionamentos mais sérios, duas suicidaram-se e duas enlouqueceram. Four out of seven ain’t bad, parafraseando Meat Loaf. E mesmo sabendo disto, não é que um idiota pagou 179 milhões de dólares por apenas um dos quadros da sua coleção “Les Femmes d’Alger”?
(A ebriedade e a ironia já estão fornicar na minha mente)
Mas podemos ir até à sétima das artes. Hitchcock tratava os seus atores como gado. Não é uma analogia, ele próprio afirmou que “os atores deviam ser tratados como gado”. Que ignóbil objetificação! Stanley Kubrick também era adepto da prática, dizia que os atores eram meros “instrumentos produtores de emoções”. Aliás, perguntem à atriz Shelley Duvall como foi a experiência nas filmagens do “The Shining”. E sobre a estratégia peculiar que ele adotou para intensificar a performance dela. Perguntem! Ela até está reformada e tudo, tem disponibilidade para vos responder. E quando obtiverem a resposta, arregacem as mangas e esfreguem a vossa indignação no seu legado cinematográfico até o apagar. E depois apaguem também – ou cancelem, como preferirem – os filmes de Spielberg, Scorsese, Ridley Scott, George Lucas ou Terry Gilliam, pois todos eles afirmaram que se deixaram influenciar por esse nova-iorquino cruel que até, imagine-se, ousou colocar em causa a filantropia e os bons costumes das irmandades maçónicas numa das suas obras.
E já que falamos nessa cidade, que tantas vezes ele usou como musa cénica para os seus filmes, como se atrevem a pagar bilhetes de cinema para engordar a obesa conta bancária do Woddy Allen? Não sabem que ele dormiu com a filha adotiva da namorada? Mas pronto, ao menos casou depois, não foi só sexo selvagem e insignificante. Mas, mesmo assim, acham bem? Talvez devam cancelar as suas 16 nomeações para Oscar de Melhor Argumento e confiscar-lhe as três estatuetas que levou para casa. Quatro, se contarmos com uma de realizador. Que grande boi! Boi…cote! Boicote!
(não acredito que elas não usaram contracetivo e há vestígios de fecundação)
E talvez seja melhor partir todos os discos de Elvis, pois o biógrafo revelou que ele colecionava amantes menores de idade e que gostava, particularmente, “de meninas com 14 anos”.
Já que falamos de música, também se devia cancelar a alcunha de “A Voz” a esse alcoólatra pouco anónimo que era o Frank Sinatra, que jogava golfe e bebia whiskey com mafiosos assassinos como Lucky Luciano ou outros criminosos da família Genovese. E depois, ainda com hálito de aguardente, ia receber condecorações presidenciais às mãos do Reagan. Que lata!
Já que andam com a febre do vinil, risquem todos os de Miles Davis e cancelem o seu legado no jazz, pois ele açoitava a mulher, Frances Davis, e defendia que todos os homens deviam seguir esse exemplo nos seus lares para “manter as mulheres na linha”. E quando escrevo “açoites” não me refiro a palmadinhas nos preliminares. Good old porradinha!
Recusem-se a ouvir Sex Pistols, pois um dos seus baixistas, Sid Vicious, foi acusado de assassinar à facada a namorada no Hotel Chelsea em Manhattan. E já que falamos em homicídios, sabiam que Charles Manson lançou um álbum em 1970? Só vendeu 300 discos, terá sido por ele ser um hediondo criminoso ou pela qualidade intrínseca da obra? Se a arte fosse boa, devia ter sido cancelada? Claro que sim, não é? E temos também de cancelar a música de Marilyn Manson, que se atreveu a adotar o seu nome para epiteto artístico. E os Guns N’ Roses, não podemos deixar passar esses idiotas californianos que resolveram fazer uma cover de uma das suas músicas, “Look at your game girl”, e integrá-la num álbum que mistura as palavras “esparguete” e “incidente” no mesmo prato. (Por acaso a história por trás desse título é genial, mas isso não é relevante agora).
Ah, não acredito que me ia esquecendo. Não ouçam mais esse ex-hino que é o “Imagine”. ‘Living life in peace’, o caraças! O senhor Lennon, para além de adúltero e pai ausente, lançava constantes insultos homofóbicos ao seu agente homossexual, Brian Epstein. E não deixem que as suas manifestações reivindicativas vos amoleçam o coração, como aquela onde ele decidiu permanecer com a Yoko seis dias deitado numa cama numa suite do Hilton – em nome de um mundo melhor e mais equitativo – porque ambos interrompiam o protesto e levantavam-se quando a criada ia mudar os lençóis e sacudir as almofadas. Era um protesto um bocadinho plástico, não era?
Para já fico por aqui, já perdi a conta às páginas. Cancelem estes todos e o vosso mundo virtuoso ficará bem mais imaculado. Há centenas, milhares de outros exemplos – os cabrões são humanos e onde existe humanidade existem imperfeições – por isso matéria-prima nunca vos faltará, mas estes, por agora, serão suficientes e já vos vão dar muito trabalho. São muitos cartazes para pintar, muitos carimbos para embeber de vermelho censurador, muitas palavras de ordem para decorar. Se alguém ousar meter-se no vosso caminho e indignar-vos com opiniões divergentes, não admitam isso. Acusem-nos de ser reacionários, de não terem lugar numa ordem social moderna; isso, isso, usem o trunfo geracional, é sempre eficaz, recorram a lugares-comuns como “Ok boomer!”, eles não vão desconfiar que a frase esconde um vácuo argumentativo e vão capitular à sagacidade e originalidade da vossa resposta. E quanto menos debate houver, mais tempo terão para preparar cartazes e se manifestarem pelo cancelamento de arte manchada de imoralidade.
Estamos juntos!