O cinema e os jogos sexuais
A atracção do cinema por perversões sexuais não é recente nem inovadora, basta pensarmos nos filmes de Pasolini (Salò, As Mil e Uma Noites, etc.), nas películas de Bertolucci (O Último Tango em Paris, Os Sonhadores, entre outros), em Adrien Lyne (Nove Semanas e Meia), e isto só para dar alguns exemplos. Na realidade, há variadíssimos filmes comerciais e de autoria, que se relacionam com a sexualidade de uma forma amoral, não privilegiando na equação o elemento amoroso.
As Cinquenta Sombras Mais Negras e Ela
O mais recente clássico contemporâneo comercial é As Cinquenta Sombras de Grey. Depois do sucesso comercial do primeiro filme, fizeram a segunda parte da trilogia de E.L. James, onde Dakota Johnson e Jamie Dornan voltam a ser os protagonistas. Repetindo o sucesso comercial, As Cinquentas Sombras Mais Negras conseguiu mais de 120 mil espectadores em apenas uma semana de exibição nas salas portuguesas. Ao que parece, a opinião desencorajadora da crítica nacional e internacional acerca da qualidade do filme não demove o interesse e a curiosidade dos espectadores. Estreado praticamente em simultâneo nas salas portuguesas esteve o filme Ela, realizado por Paul Verhoeven e protagonizado por Isabelle Huppert (premiada com o Globo de Ouro de Melhor Actriz). O filme tem como temática a pulsão sexual e a forma inconvencional como se pode manifestar. Verhoeven e Huppert não são novatos na temática da perversão sexual. De Verhoeven basta vermos o seu célebre filme Instinto Fatal, e de Isabelle há vários filmes mas bastaria vermos a sua interpretação em A Pianista (realizado por Michael Haneke).
Violência sexual comercial e de autoria
Não sofrendo de qualquer espécie de preconceito artístico, comparemos o nível de violência sexual nos filmes As Cinquenta Sombras Mais Negras e Ela. O primeiro abre com a cena de um acto sexual convencional (para mostrar como o casal de protagonistas se relaciona nesta nova fase, só desenvolvendo mais tarde níveis de violência), e o filme Ela abre com o som da agressão sexual à protagonista Michèle na sua própria casa. Se em termos de alcance artístico estamos a comparar o incomparável – As Cinquenta Sombras é apenas uma narrativa de entretenimento, e Ela a crítica bem-humorada à burguesia ocidental –, podemos compará-los no domínio da violência sexual. Michèle Leblanc (Huppert) é uma divorciada de 60 e poucos anos, que é brutalmente violada em sua casa. No entanto, para surpresa de todos, esta reage quase indiferentemente, não fazendo sequer queixa à polícia (vemos mais tarde que tem uma relação traumática com a entidade policial). Leblanc tem uma empresa de jogos de computador e vive ao nível da alta burguesia: casa enorme com jardim, boa viatura, jantares em restaurantes caros, etc. Leblanc vive de forma despudorada a sexualidade e mantém vários relacionamentos estritamente sexuais com alguns parceiros em simultâneo, controlando emocionalmente todos à sua volta. O surpreendente é que a vida de Leblanc agita-se a partir do momento em que começa a receber mensagens do suposto violador, e não a partir da violação. Começando então o seu próprio jogo (em modo de fuga ao tédio da vida burguesa).
Em As Cinquenta Sombras Mais Negras, o casal de protagonistas encontra-se numa nova dinâmica de “heterossexualidade normalizada”. A partir de certo momento têm de lidar com os fantasmas perversos do protagonista Christian e com a ambiguidade (recalcamento?) da vontade “sadomasoquista” da protagonista feminista. Já a aparição de Kim Basinger no papel de Elena Lincoln, vem determinar a origem de Christian nos jogos de submissão sexual. Uma forma de justificar a génese da perversão, coisa que no filme Ela não existe. Não há essa necessidade moralista de apaziguar e justificar a origem das perversões.
Contudo, ambos os filmes tocam na questão do jogo sexual, embora o abordem de formas díspares (com mais ou menos profundidade). A principal diferença talvez seja o peso que cada um dá ao poder da figura feminina. Enquanto que em Ela, a protagonista é uma controladora desinibida, perto da sociopatia, com poder, em As Cinquenta Sombras, a figura feminina central não controla o seu próprio destino, continuando servil às questões amorosas. Ou seja, se no filme francês a violência sexual é vista como uma perversão feminina e do seu domínio sobre a mesma, no blockbuster anglófono, a violência a que se sujeita a protagonista é tendencialmente um meio para obter um objectivo amoroso/romântico.
A perversão vende
O certo é que a temática dos jogos sexuais continua a vender. Seja ao nível do cinema de autor (o filme de Verhoeven arrecadou diversos e importantes prémios da crítica), quer ao nível de valor de mercado (a receita de bilheteira de As Cinquenta Sombras de Grey rendeu mais de 502 milhões de dólares só em 2015, fora o lucro obtido na venda dos livros e o lucro das sex shops, através da venda de vários acessórios eróticos presentes na narrativa de E.L. James.). E ainda há quem diga – existem estudos recentes nesse sentido – que o sexo já não vende. Ai não que não vende.