Amanhã volto a poder sair à rua
As últimas semanas foram das mais difíceis da minha vida. Não pus maias na porta e, talvez por isso, veio o bicho. Óbvio que não foi o carrapato maiato, foi sim aquele que tanto nos mudou a vida nos últimos meses mas, a esta altura do campeonato, porque não criar mais um falsa teoria para os médicos da verdade? Perdi mais de 5kg porque a febre fez o meu corpo virar país tropical, não tive forças para sequer me sentar na cama e, sabendo-me asmático, era a falta de ar o grande desafio. Assim foi.
Segundo dia, falava com mais pausas do que a robô do tradutor do google. Não conseguia respirar para falar e, para o resto, o essencial dizem, mal me aguentava. Fui eu de ambulância para a ala de emergência Covid do Hospital Santo António. Assim que lá entrei, a média de idades baixou uns bons percentis. Era o único puto numa ala onde a grande maioria idosa se agarrava com força aos ventiladores. Os seus corpos curvavam-se de tal forma que parecia que se agarravam à cama, não em dor, mas em quase súplica para não se irem dali. Uma das senhoras que estava na minha ala gritou, durante todo o tempo em que lá estive, “Não quero morrer, por favor, não quero morrer”. Os gritos dela eram uma mistura esquisita entre uma voz gutural que se sobrepunha às dificuldades respiratórias da doença. Era uma voz que só posso classificar como voz de um medo profundo, temor sincero pela vida. Eu tive medo mas não tive aquele medo. Eu, e acho que grande parte das pessoas, principalmente as saudáveis e em idade ativa madura, tem medo do sofrimento. Tem medo das complicações, da luta, do desafio e da doença. Mas não tem medo de morrer. Se formos honestos, até pelo que conhecemos da doença, sabemos das boas hipóteses que temos.
Talvez, por isso, tenha surgido este espaço confortável que é o da negligência, o de pensar primeiro nos números ou até de instrumentalizar uma doença para fins partidários e políticos. Falta-nos uma boa dose de humanidade e empatia. Vermo-nos diante do sofrimento do outro e saber lidar com ele. Saber responder-lhe. Quando ultrapassei os dias mais complicados da doença, e me foi devolvida uma certa consciência, peguei no telemóvel. As manifestações de chalupas negacionistas, os comentários de dúvida e insulto à doença e aos doentes e até as negligências dos amigos, do trabalho ou da família não rimavam com aquele cenário de pessoas agarradas pela vida. Era tudo cinematicamente irreal. Parecia um mau filme. Como se pode ser tão sobejamente imbecil quando há pessoas, tantas, a sofrer? Não podemos viver com todos os espinhos dos outros cravados na nuca mas, porra, nem quando somos chamados à nossa responsabilidade somos capazes de ir além da laracha, do número ou do conforto?
Não tinha a dimensão real do emaranhado civilizacional em que nos metemos. Acho que o que me assombra naquela súplica gutural é o desafio à minha complacência e conforto. É saber que, até ali, até o meu sofrimento me ter deixado com aquela visão privilegiada, eu não tinha pensado neste xadrez invisível que é a nossa ação. E, aqui, já não falo do dever cívico perante a doença. Falo do dever cívico da decência e do respeito pela dignidade. Assusta-me muito não sermos capazes de responder a um grito daqueles.
A parte egoísta. Felizmente, voltei a estar bem. Tive saudades do palco e de ver o rosto total da minha mãe. A comida não sabe a nada, perdi uns kilos mas não aconselho a dieta. Tenho a certeza que ser médico ou enfermeiro é uma profissão do crl. Amanhã volto a poder sair à rua e, pela primeira vez na vida, nem me importo que seja Gondomar lá fora.
P.S- Para cumprir a quota cómica do conteúdo pedi, à minha cadela, para produzir uma peça onde ela imita o dono infectado. Chamou-lhe “Dono doente dono ou a miséria de acordar sem biscoito”