Notas sobre a desmesura argentina (a partir de Maradona e Roberto Arlt)
I. Se queremos entender uma nação, devemos olhar, não para os seus ídolos, mas para a maneira como estes desaparecem. O jeito com que descolam da realidade e se inserem, de forma mais ou menos gradual, naquilo que entendemos por memória colectiva.
II. Neste século iconoclasta e fanático, só o final abrupto de um ídolo é capaz de mostrar os sentimentos genuínos de um povo. Aquilo que lhe eriça a pele. Passaram sete dias da morte de Diego Armando Maradona, e o mundo inteiro ainda tenta processar a partida daquele rapaz divino, que subiu ao Olimpo para recordar a todos que era tão falível como qualquer outro ser humano.
III. O futebol comove milhões, mas são poucos os futebolistas que despertam uma devoção religiosa. No caso do Dez, convém não nos enganarmos: não era apenas o seu jogo. O que espantava em Maradona, o que levava à adoração compulsiva, era a sua história, o seu percurso quase profético. Maradona foi protagonista não só da sua própria tragédia, mas de aquela que foi análoga à história de uma nação. As origens humildes, a astúcia, o talento desmedido, a glória, a tentação, a queda, os demónios. O mito de Maradona é o mito latino-americano, e é sobretudo o mito argentino.
IV. Tamanha desmesura é invariavelmente fatal para quem a carrega, não para quem a vê de fora. A desmesura é um caso quase certo de morte prematura. O desaparecimento de Maradona não se dá com a sua morte em 2020, mas com a sua queda, poucos anos depois da performance miraculosa contra a Inglaterra, no mundial de 1986. A expulsão do campeonato de 94, os vícios, os escândalos, assim sucumbe a sua história, mesmo que ele a tenha sobrevivido.
V. Os ídolos, aqueles que carecem de comedimento, partilham um traço: são eternos contemporâneos da sua obra, indivisíveis do seu momento, como Franz Kafka, Joana D’Arc, Elvis Presley ou Arthur Rimbaud. O povo argentino, povo jovem de uma história curta e confusa, não pôde evitar ver-se reflectido nos triunfos e fracassos de Diego Armando.
VI. Essa identificação não está associada ao sucesso, mas sim ao fulgor da desmesura. Roberto Arlt, escritor aspirante a maldito, antítese soberana de Borges e da academia, também encapsulou o mito indivisível do talento e da desmesura argentina. A sua história pessoal, pautada pelo desenraizamento e embates contra um classismo bacoco, elevou a sua escrita a uma categoria inclassificável das letras latino-americanas. Dissecou o mal presente nos mais pequenos gestos da vida burguesa, numa autêntica antropologia de mesquinhos e fracassados.
VII. “Digamos, modestamente, que Arlt é Jesus Cristo” terá dito Roberto Bolaño. A morte abrupta de Arlt, aos 42 anos, por paragem cardiorrespiratória, não ocupou as páginas da secção cultural dos jornais argentinos, pois o assunto do dia era a manifesta surpresa de Borges não ter sido vencedor do Prémio Nacional de Letras.
VIII. Esta ironia é só um pequeno pormenor. A sua passagem eléctrica e descomedida pela literatura marcou a sua época, ainda que em diferido. Foi repudiado por escrever num castelhano plebeu e utilizar o lunfardo, abrindo a porta a escritores como Cortázar ou Sabato para fazerem o mesmo, 25 anos depois. A sua literatura foi análoga do estado de espírito de uma nação, embora poucos tenham sido os que o notaram quando ele era vivo.
IX. “A desmesura é de ordem trágica” disse o autor Juan José Saer, num ensaio dedicado a Arlt. “Sustenta-se tanto na noção de transgressão como na de equilíbrio. Não basta acumular pathos para que a desmesura apareça: é necessário que exista uma tensão entre negatividade e positividade, e que desse conflito floresça a angústia, a culpa, o desespero, a perda e a autodestruição.” Saer sabia que é a desmesura que sustenta, para além da obra, a figura dos ídolos (e mártires) de um povo. Sabia também quão frágil é este conceito.
X. Maradona e Arlt, como poderão ser Franz Kafka ou Elvis Presley noutros contextos, são espelhos de um povo. Toda a gente sabe que os espelhos nem sempre reflectem aquilo que desejamos ver. Acontece com frequência não estarmos preparados para essas imagens. É por isso que os ídolos também servem para entendermos o que somos enquanto indivíduos e enquanto colectivo, e com isso perceber como nos podemos superar.
Roberto Arlt encontra-se editado em Portugal pela Livraria Snob (Escritor Fracassado e outros Contos / Trad. Miguel Mochila) e a editora Exclamação (Águas-fortes Portenhas / Trad. Rui Manuel Amaral).