As sete vidas do humanitarismo e o seu caminho até ao presente
Em fase de crise social, económica, política e cultural, algo que advém sempre é a ideia de humanismo (e a sua concretização na forma do humanitarismo). Na base, está o conceito filosófico que reforça a importância do ser humano, tendo em vista o seu progresso e a sua liberdade. Para que isto aconteça, é exigido o esforço e o desenvolvimento do… ser humano. Assim, é a preocupação e a atenção que cada um tem em relação aos outros e ao mundo em que vive, que abriga todos eles. Por norma, aquilo que se assume como humanitário é independente da religião, procurando apoiar-se no que se sabe e no que se conhece do e sobre a humanidade para observar o mundo e, nele, perante as situações existentes, atuar. Porém, há várias visões do que é o humanismo e a história assim o ilustra.
As fundações do humani(tari)smo
Na raiz do humanismo, está a sua escrita em latim – humanitas, que, à letra, significa a natureza humana, a civilização, mas também aquilo que se entende como a atenção com o outro. Aliás, no pensamento romano, nomeadamente na mente dos advogados Cícero e Séneca, dois autores de referência do latim, a benevolência assume-se como a humanitas. É o amor ou a ternura que encaminha o ser humano a olhar pelo outro e a participar nesse mesmo esforço. Há uma predisposição de, mesmo perante o cenário de dor ou de sofrimento, atender ao outro. O “sentir o outro” é, assim, a premissa fundamental que a linguística ajuda a esclarecer e que a história não faz esquecer. Em muito se torna, assim, equivalente à philantrophia do grego, que significa, de igual modo, essa atenção e essa benevolência em relação aos demais seres humanos. No entanto, levantam-se outras problemáticas da sua origem, que radicam no facto de muito desses autores do latim quererem dar o significado de paideia à palavra humanitas. Paideia significa, no entanto, a educação proveniente da classe aristocrática, que, na base, possuía a formação para a sociedade da pólis, perante os modelos de excelência subjacentes na Grécia Antiga.
O conceito de humanitas foi-se, assim, desdobrando nos séculos seguintes para dois significados que se inspiraram nessa tradição clássica. Um dos significados foi o da benevolência humana, mas não impediu que outro se desenvolvesse, o do método de estudo de um grupo delimitado de intervenientes, tendo em conta o uso cuidado e preciso da linguagem. A Revolução Francesa, contudo, ao sabor dos ventos do Iluminismo, acabou por trazer uma inspiração mais filosófica, que contribuiu para que o estudo da ética se tornasse mais tangível, abandonando algumas nuances transcendentais que ficavam, assim, no passado. Cruzando esta visão com os valores do protestantismo, menos ligados à adoração e mais voltados para o mundo palpável, nasceu um percurso que, apesar da componente humanitária, se inclinou para a comunidade académica, formando o Manifesto Humanista que, em 1933, foi desenvolvido pela Universidade de Chicago. Formou-se, assim, uma mundividência que procurava que a ciência fosse o enfoque da dimensão moral e das decisões quotidianas de cada um.
No entanto, e detrás, vieram diferentes sociedades e instituições com objetivos marcadamente filantrópicos e benevolentes, inspirados nos valores iluministas da fraternidade e da igualdade. A ciência e o conhecimento eram importantes instrumentos de desenhar a virtude humana, colocando de parte os percursos da Igreja até então. Este confronto entre a fé e a razão perdurou e, ainda hoje, perdura, embora de forma implícita. A filosofia procurou encontrar uma terceira via, orientada para a desconstrução do ser humano e da sua envolvente mental, que não esquecia a profunda tradição cultivada pelos pensadores da Antiguidade Clássica. Os valores do humanismo encontravam-se, assim, bastante fraturados, ramificando-se pelo discurso científico e académico, pelo religioso e assente na fé e pelo filosófico.
As expressões do humanitarismo por parte dos Estados
Foi nessa emergência do Iluminismo e de um novo primado da razão humana e do ser humano que as questões humanitárias começaram a tornar-se prementes, no ponto de vista estatal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos ajudou a assegurar a dignidade de cada indivíduo, assim como os seus direitos inalienáveis. Um dos primeiros defensores deste tipo de intervenções humanitárias veio de John Stuart Mill, filósofo britânico, que se debruçou sobre esta questão num dos seus ensaios, sendo o caso “Algumas Palavras sobre a Não-Intervenção” (1859). Mill, assim, apoiou a intervenção armada nos casos em que, não havendo risco de ser atacados, a moralidade internacional era posta em causa, que, por sua vez, punha em causa a integridade de várias das nações civilizadas. A barbaridade que era atentada por um governo em relação ao seu povo era, assim, aquilo que moveria qualquer intervenção deste cariz.
Uma das questões que é assinalada por Mill é, de igual modo, a soberania de cada nação nas suas questões internas, o que poderia gerar interrogações sobre este tipo de iniciativas. Assim, só se tratam de exequíveis na necessidade de salvaguardar os cidadãos do país visado, com a finalidade da sua paz e da sua liberdade. Apesar das considerações do filósofo serem, na generalidade, bem recebidas, o futuro traria outras vozes e outras perspetivas sobre estas intervenções. Os grandes conflitos bélicos do século XX vieram trazer reservas a essas perspetivas (Mill fê-las no século XIX) e, como tal, adveio a necessidade de existirem instituições intermediárias, que pudessem mediar tais questões.
John Rawls, filósofo norte-americano dos meados do século XX, foi um dos pensadores que procurou abrir espaço para a intervenção humanitária no contexto de uma sociedade assente na paz e da legitimidade dos seus órgãos políticos e sociais, regendo-se pelos direitos humanos. Esse espaço surgia no contexto das limpezas étnicas e dos regimes opressores e totalitários, que violavam as leis internacionais vigentes. Por sua vez, Martha Nussbaum, também ela filósofa, traz uma perspetiva reforçada à de Rawls. Assinala não os estados mas sim o sofrimento dos seus habitantes como a razão forte para a intervenção humanitária. Se algo que lhes é essencial é posto em causa ou está em falta, pode-se justificar essa intervenção.
Aquilo que se crê ser a primeira grande ação humanitária internacional aponta para uma causa nacional, a Guerra da Independência da Grécia, que ocorreu entre 1821 e 1829. Aquilo que despertou a necessidade do Reino Unido, da França e da Rússia, de forma concertada, intervirem naquele conflito foi o espectro que se foi percecionando de um regime barbárico, em que o sultão do Império Otomano (a atual Turquia), Mahmud II, planeava deportar toda a população cristã residente na Grécia para o Egipto, tornando-se, lá, escravos. Para a sua substituição, o sultão pretendia levar cidadãos egípcios. Procurando meios diplomáticos para dar solução àquele problema, essa aliança acabaria por, na Batalha de Navarino, arrasar uma frente naval egípcia-turca, abrindo as portas à independência grega.
A França continuaria a procurar usar meios para, em alguns territórios, como no Líbano, selar a paz e salvaguardar a integridade humana das minorias cristãs lá residentes. O mesmo aconteceu na Bulgária, com o Reino Unido a procurar dar destaque internacional a esta situação, em que tropas otomanas vinham massacrando os seus locais que se insurgiam por reivindicarem a independência do território. Internamente, muitas eram as questões que se colocavam à legitimidade destas movimentações por parte do Reino Unido ou da França. Pouco ajudou o que se veio a seguir, com os dois grandes conflitos mundiais, embora instituições internacionais, como a então Liga das Nações, procurassem pugnar por encontrar formas de salvaguardar os direitos humanos ratificados na Declaração Universal.
Em muito ajudou, na sequência da Segunda Guerra Mundial, a criação e a estruturação da Organização das Nações Unidas, que, para além de procurar mediar as relações geopolíticas dos diversos países do globo, se tornou na instituição primordial das causas humanitárias. Aliás, a cargo desta, foram muitas as intervenções que foram feitas a esse nível, como no Congo, no Chipre, na África do Sul, na então Jugoslávia e em Timor-Leste, sendo algumas destas, no entanto, feitas com o recurso a forças armadas. A legislação internacional vigente impede a maioria de intervenções, como a invasão e a interferência de outros países em questões que coloquem em causa a soberania de um dado Estado, ficando na responsabilidade das Nações Unidas estas questões. As intervenções que subsistem são postas em causa, pela violência que, muitas vezes, acaba por se repercutir naqueles aos quais se queria atender à sua paz e ao seu bem-estar. Para além disso, o próprio papel dos Estados Unidos como “polícia do mundo”, assim como intervenções a cargo da NATO ou de outros países, como a Rússia, são colocados em causa, tanto nos seus fins, como na própria dimensão dos danos que causam.
A ajuda humanitária no terreno
Por sua vez, e para lá das muito questionadas intervenções militares, existem as intervenções que diferentes organizações e associações desenvolvem de forma independente ou articulada com outras. Na base, está o apoio material e logístico àqueles que precisam. Tratam-se de intervenções muito operacionais, que não conseguem estender-se a planos a médio ou a longo prazo, havendo a necessidade dos órgãos sociais e políticos dos países nos quais aqueles que são ajudados residem intervirem sobre estes casos. Maior parte dos visados são, para além dos indivíduos em situação de sem-abrigo, aqueles que se tornam refugiados, assim como as vítimas de grande catástrofes naturais e até sanitárias. No coração destas intervenções, está a ajuda ao próximo, a salvar as suas vidas, a aliviar o seu sofrimento e a manter a dignidade humana. Desprende-se, assim, da própria ajuda que, muitas vezes, é dada por parte dos próprios Estados, apoiando com material e com verbas para o desenvolvimento e sua sustentabilidade dos países em vias de desenvolvimento e dos seus habitantes.
Esta ajuda materializa aquilo que se entende como o grande imperativo moral do humanismo, que é a expressão da solidariedade universal entre os seres humanos. As Nações Unidas, como já mencionado, possui diferentes frentes no apoio humanitário, nomeadamente através do seu Gabinete para a Coordenação de Assuntos Humanitários (mobiliza e habilita cada organismo a atuar no terreno): o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa Alimentar Mundial (WFP). Os países mais visados por estas frentes são, normalmente, os da África Subsariana (o que está a sul do Deserto do Saara) e os do Médio Oriente.
As suas origens também apontam para o século XIX, também que foram encaminhadas pela inspiração iluminista e pela alteração de consciências e de atuações que se sucedeu à Revolução Francesa. É marcante o nome do suíço Henri Dunant, sendo ele um dos co-fundadores da Cruz Vermelha, ao lado do jurista Gustave Moynier, do general Henri Dufour e dos médicos Louis Appia e Théodore Maunoir. Após assistir aos estragos humanos deixados pela Batalha de Solferino, em 1859, no contexto da Segunda Guerra da Independência Italiana, Dunant, que era já um ativista e que atendia aos cuidados necessários pelos soldados feridos, tomou a iniciativa de desenvolver uma organização que pudesse atender às lesões e aos estragos feitos aos soldados. Deixou essa ideia por escrito em “Un Souvenir en Solferno” (1862) e viu o Comité Internacional da Cruz Vermelha nascer a 17 de fevereiro de 1863.
No entanto, não se pode esquecer o papel da enfermeira Florence Nightingale, nomeadamente na Guerra da Crimeia. Aqui, mais do que os problemas físicos, eram os problemas higiénicos e sanitários, que deixavam muitos dos soldados em situações críticas. Nightingale fez-se rodear por uma equipa de enfermeiras e, para além de construir uma cozinha e uma lavandaria, aumentou a higiene do hospital no qual albergaram os feridos. Para além deste atendimento muito mais melhorado, a enfermeira compilou uma série de dados que lhe permitia estudar os níveis de mortalidade e as suas causas, tendo em vista a constante melhoria das condições dos estabelecimentos de saúde. A nutrição e a higiene foram duas das grandes causas do seu trabalho, progredindo nesse sentido através da criação da Comissão Real da Saúde do Exército britânico, nunca deixando o seu método científico e sistémico de melhorar as condições dos cuidados de saúde prestados.
Imparcialidade e neutralidade foram dois dos valores que Nightingale sempre manteve no seu trabalho e que Dunant, o grande ideólogo da Cruz Vermelha, sempre defendeu. Foram dois valores que estariam versados em todas as leis humanitárias internacionais que, daí em diante, delinearam todas as atividades desenvolvidas com esses fins, assim como conferências diplomáticas que começaram a ter, na sua programática, as questões dos termos da intervenção em conflitos para assistência médica e humanitária. Cruciais seriam as Convenções de Genebra, assinadas em 1864, que estabeleciam a neutralidade dos serviços médicos, a obrigação de cuidar dos doentes e lesados nos conflitos, assim como a definição do própria emblema da Cruz Vermelha. Estas Convenções seriam revistas por diferentes ocasiões, adaptando-se ao desenvolvimento das proporções dos conflitos e abrindo portas ao atendimento aos cidadãos que se encontravam desprotegidos em situação de guerra.
Não foi muito tempo depois que, nas fomes que ocorreram na China entre 1876 e 1879, e que viriam a matar mais de 10 milhões de habitantes, o missionário britânico Timothy Richard deu o mote para que o Comité de Socorro às Fomes de Shandong se formasse com o apoio de diferentes membros da sociedade britânica e que mais de cinco milhões de dólares pudessem ser reunidos em forma de prata. Também nas fomes que ocorreram na Índia durante esse período (mais de 5 milhões foram as vítimas mortais), foram aplicadas mais de 400 mil libras, embora não com o afinco do que tinha sido feito na China. Durante os anos que se seguiram, as ajudas prestadas assumiram estas duas variantes: a monetária e a logística, sendo que, nesta, sempre com a presença de recursos humanos, entre profissionais e voluntários. A problemática da fome nos país em desenvolvimento assumiu protagonismo na comunicação social, motivando diferentes iniciativas, incluindo de cariz cultural, como os concertos Live Aid, em 1985.
O presente da ajuda humanitária
Atualmente, a ajuda humanitária prestada permanece intensa e mais necessária do que nunca, embora contando com uma diversidade de intervenientes que não era tão evidente outrora. Atualmente, e como a Cimeira do Mundo Humanitário, realizada em Istambul (2012), permitiu entender, são os governos, as organizações da sociedade civil (sem fins lucrativos e não-governamentais) e até empresas que se envolvem nesta prestação de ajuda. A necessidade de conter e de extinguir os conflitos armados, a gestão das crises humanitárias e o financiamento são questões que permanecem por ser inteiramente sanadas, mas que procuram respostas. As doações feitas por privados e particulares, por multinacionais, por organizações vocacionadas ou não para estas causas e até pelos Estados vêm aumentando, permitindo agilizar a atuação em diferentes focos, com recursos em grande escala. Porém, as necessidades acompanham o crescimento dos recursos, acabando por os ultrapassar em muitos dos momentos.
Em termos de atividade propriamente dita, a ajuda verifica-se no fornecimento de bens alimentares, de vestuário e de outros bens de primeira necessidade, assim como apoio educativo, cuidados de saúde e abrigo. A ajuda é, acima de tudo, mais material do que financeira, embora se discuta a possibilidade da ajuda financeira ser mais eficaz na própria gestão de custos e na deteção das necessidades efetivas no local, o que permite que o investimento feito seja mais bem direcionado. Isto é mais do que percetível em países em que existem conflitos latentes, o que pode motivar outros conflitos na gestão dos recursos. Isto porque existem registos de furtos por parte de locais e até mesmo a presença de grupos armados a impedir que a ajuda se concretize, quando não são estes também a saírem beneficiados com essa ajuda. O impacto da intervenção humanitária pode ser avaliado pela recetividade do país visado e dos seus locais, assim como pelas suas condições culturais e políticas.
Outra questão que é, de igual modo, emergente na ajuda humanitária é a estabilidade mental e psicológica dos próprios trabalhadores. Existe a necessidade de haver níveis de responsabilidade e de resiliência acima da média, especialmente porque a sua atuação decorre em contextos delicados, de conflito, em que os ajudados estão, por norma, vulneráveis e até magoados. Esse acompanhamento dos funcionários é algo que vem crescendo com a maior profissionalização da atividade de muitos destes organismos, que vêm contando com maior rigor e com mais critério no seu percurso. Iniciativas de aferição da quantidade e qualidade destas missões estão a surgir, enquadrando-se na gestão e monitorização das atividades.
Assim, são programas ligados à contabilidade e à gestão da qualidade (como o Padrão-Base Humanitário da Qualidade e da Contabilidade ou o Sphere Project, procurando a melhor qualidade das atividades), à gestão dos recursos humanos (a People in Aid, que se fundiu com a HAP International para dar lugar à CHS Alliance, contribuindo também para o aumento da transparência e da quantificação das atividades) e até à certificação das próprias organizações (como a HAP International fazia, garantindo a obediência a diretrizes de gestão, organização e comunicação da sua atividade). Em suma, uma bem maior profissionalização, à qual se alia o próprio uso dos meios digitais, permitindo utilizar ferramentas que possam tornar a ajuda mais capaz e mais ágil, estendendo o seu campo de atuação e de monitorização e permitindo, no caso de impossibilidade física, de estar presente.
O humanismo na sua componente prática assume-se, assim, bastante fragmentado, embora a meta seja uma só: a atenção com o próximo, com o outro, e a sua salvaguarda. A benevolência humanitária é aquilo que deve pautar toda e qualquer intervenção, sendo que a história nos assegura que, entre melhores e piores intenções, nem sempre foi o que ocorreu. Porém, o que é mau não deve sobrepor às inúmeras iniciativas de louvor e de grande fôlego que foram feitas com o primor naquele que é o que sofre e que se encontra a precisar de ajuda. Não é necessário olhar tanto assim para fora para encontrar organizações que queiram ajudar. São inúmeras aquelas que, por todo o lado, por uma série diversificada de causas e de preocupações, procuram dar a mão e dispor do bem individual para o poder partilhar e multiplicar para o bem comum. O voluntarismo revela essa atenção desenvolvida e apurada da humanidade, que cumpre aquilo que se vislumbrou ao princípio: o humano a ser humano.