Swami Vivekananda e os ensinamentos hindus: da Índia para o resto do mundo
Swami Vivekananda foi um dos pensadores mais prestigiados na introdução do hinduísmo no Ocidente – ainda decorria o século XIX -, alinhando as escrituras hindus com as práticas suas contemporâneas. No entanto, aquilo que o diferenciaria ainda mais seria o fomentar de um discurso intercultural e interreligioso, que inspirasse um entendimento plural e envolvente do mundo. De igual modo, fomentou uma outra dimensão, esta voltada para dentro, que foi o de uma consciência nacionalista dentro da Índia, o seu país. Viajou um pouco por toda a parte e, não obstante, tornou-se uma referência quase santificada no país onde nasceu, na sabedoria dos seus ensinamentos e na reinterpretação das raízes hindus para a sua atualidade social, cultural e educacional.
Swami Vivekananda nasceu a 12 de janeiro de 1863, em Calcutá, na Índia, falecendo com só 39 anos de idade em Belur Math, nesse mesmo país. Assumiu, desde cedo, como missão, a maturidade espiritual do ser humano, alcançando-o através da religião, o caminho para a divindade humana e para a sua manifestação diária e constante. Fá-lo começando pela Índia, alimentando o seu sentimento nacionalista nas suas comunidades, inspiradas pelo seu sucesso nos Estados Unidos e na Europa, onde havia propagado os ensinamentos hindus e a herança cultural e religiosa da Índia. Com a sua recetividade a Ocidente, era mais uma prova da valia de um histórico e de um legado que merecia ser autonomizado do então sistema colonial inglês. Para si, a Índia era a terra da virtude, onde a humanidade atingiu o seu ponto mais alto através da generosidade, da pureza, da serenidade e da introspeção espiritual. A força de vontade coordenada era, para si, a chave da independência, dando-lhes um poder infinito a ser organizado e coordenado.
Assim, para Vivekananda, não bastava estar quieto e sossegado no seu processo meditativo, mas sim fazer por si com coragem e força, dedicando as suas ações para com a divindade, sintonizando-se com esta na sua mobilização. É uma ação articulada com o sagrado que habita em cada um e que não descura a unidade das religiões, embora, no caso da índia, se deva sustentar no seu legado muito próprio. Aliás, como referido, é a religião que possibilita que a totalidade da alma se transforme na força da sua crença, num processo de ser e de se tornar. É, também, ela que faz com que o ser humano se torne sensível e consciente, sintonizado com Deus e com a sua própria autorrealização. Foi um caminho que discerniu com a ajuda da sabedoria do renascimento bengali, que, no seu brahmonismo, é uma interpretação hindu monoteísta e que fortaleceu o desenvolvimento de uma Índia moderna e autónoma. De igual modo, seria crucial o seu guru, Ramakrishna, que desenvolveu o seu percurso numa conjugação de várias doutrinas religiosas e que contribuiu para que o caminho espiritual se tornasse cada vez mais sério e considerado pelos seus conterrâneos.
Aliás, Vivekananda fundaria a Ramakrishna Math, uma organização legal destinada a treinar monges e a prover serviços sociais, desde na saúde às catástrofes naturais, gestão de conflitos, educação e caridade. De igual modo, criaria a Ramakrishna Mission, que fortaleceria essa proliferação da filosofia Vedanta (que bebe da origem, dos escritos védicos) e dos ideais yógicos, que não são mais dos que as práticas e disciplinas a assumir pelo praticante. Para além dessas funções de dar a conhecer, também tinha um papel filantrópico, de atenção para com os mais necessitados. Seria, também, ele que herdaria a importância das práticas do yoga, do tantra (as práticas esotéricas do hinduísmo e do budismo) e da filosofia hindu sobre o ser (a existência do brahman como realidade última do universo, à luz da perspetiva da advaita vedanta); para além de ser o herdeiro escolhido pelo seu guru para ser, também ele, um guru.
O homem não tem por finalidade o prazer, mas sim o conhecimento.
“Karma Yoga” (1896)
Assim, entendia o absoluto e o relativo como partes da mesma realidade, assim como o pessoal e o impessoal, o ativo e o inativo. Fundem-se nesse mesmo ser supremo, eliminando a separação da dualidade e tornando-a simples, numa só unidade inalienável. É a unidade que está subjacente à diversidade, onde, em todas as coisas, o divino existe. Os Vedas (os escritos religiosos da Índia antiga, datando de um milénio antes de Cristo) são as normas do mundo, nas quais o seu percurso se inspira. No entanto, e no contacto com o diferente, procurou um diálogo adaptativo, onde a prática fosse, sempre, uma força necessária para a realização do divino (o raja yoga), em que a experiência pessoal ganhava mais peso que os escritos ancestrais.
Aliás, estes seus ensinamentos acabariam por passar para a sua literatura. Obras como “Karma Yoga” (1896, das suas palestras em Nova Iorque), “Raja Yoga” (1896, que apresentam a interpretação de Vivekananda dos yoga sutras (aforismos teórico-práticas sobre o yoga em sânscrito)), “Lectures from Colombo to Almora” (1897, reunindo 17 palestras dadas entre o Sri Lanka e a Índia), “Jnana Yoga” (1899, o caminho do conhecimento do hinduísmo, onde Vivekananda valoriza a importância do conhecimento, que é o objetivo final deste percurso, e da liberdade) e “My Master” (1901, onde constam duas palestras dadas em Londres e em Nova Iorque, nas quais discute a vida e a espiritualidade do seu mestre, Ramakrishna).
Vivekananda cresceu, desde cedo, ao lado da espiritualidade, nascendo numa família aristocrata de Calcutá, que lhe impeliu ao serviço do outro através do caminho da divindade. A sua fama tornou-se incalculável, por entre as palestras que deu um pouco por todo o Hemisfério Norte, e chegaria mesmo a ser celebrizado no seu país de nascença até hoje, no Dia Nacional da Juventude na Índia, que se comemora no seu aniversário. Futuro santo patriótico, foi influenciado pela racionalidade e pelo espírito progressista do seu pai e pelas afinidades religiosas da sua mãe, que lhe contava as histórias dos dois grandes épicos da literatura indiana, o “Ramayana” e o “Mahabharata”.
Ambas as influências encaminharam-no para o contacto com a divindade e com o esoterismo hindu, também por via de Keshab Chandra Sen, que procurou unir a teologia cristã ao fundamentos do hinduísmo. Vivekananda fundia os seus saberes com canções, pinturas e até poemas (como “Kali the Mother”, divindade que representa a força e o empoderamento), sempre em bengali, idioma com o qual contactou desde criança, já que a sua família tinha essas origens, embora também tivesse facilidade com o inglês. Foi o conhecimento desse idioma, aliás, que lhe abriria portas para o contacto com com o Ocidente, entre as demais palestras que fez, onde se destacou o seu discurso no Parlamento das Religiões do Mundo, que se reuniu em Chicago em 1893.
Embora considerasse o hinduísmo como a mãe de todas as demais religiões, pelas suas influências no budismo e no cristianismo, discursos que se desenvolveram posteriormente, Vivekananda considerava-as todas com o mesmo valor e com a mesma importância, valorizando a sua individualidade e incentivando ao seu crescimento, sustentado nas premissas de auxílio, de assimilação, de harmonia e paz. Numa quase-religião universal, defendia a unidade de Deus em caminhos que, embora dispersos e distintos, se uniam ao encontro da divindade.
Apesar de Vivekananda nascer e crescer em torno das tradições hindus, era monoteísta, acreditando firmemente num só Deus, apesar de várias materialidades que este pudesse assumir. Todas essas expressões eram equivalentes em torno de uma figura de Deus que não assume formas materiais e palpáveis e que pode ser encontrado através da meditação, que tanto praticou. Seguiria firme neste espírito de uma universalidade espiritual, alheia às fronteiras, sendo um projeto quase utópico.
“A alegria e a tristeza são duas prisões; uma de ouro e outra de ferro, mas feitas igualmente para nos prender e impedir de seguir a nossa verdadeira natureza.”
“Jnana Yoga” (1899)
Ainda sobre a sua nação, defendia que o sistema de castas era uma estrutura social, muito mais do que algo pré-determinado à nascença. A divisão do trabalho, por exemplo, era um passo que este sistema salvaguardava, o que, na sua visão, garantiria excelência na profissão desempenhada por cada um. No entanto, apesar de considerar que, nesta forma, seriam um caminho para o progresso, era contra o seu dogmatismo e a sua aversão a eventuais mudanças nestas castas.
Procurou, assim, para além das suas ideias sobre a nacionalidade indiana, incutir um espírito mais reformador e progressista, capaz de mobilizar os seus conterrâneos a valorizarem a sua cultura e as suas práticas ancestrais, em especial, como já mencionado, a meditação (ou dhyana, a ponte que liga a alma ao supremo, a Deus). Um processo transversal a todos os seres humanos, capaz de os sensibilizar para a sua realidade – existência, conhecimento e bênção, orientadas para ser, saber e amar. Através do Yoga, para alcançar o misticismo, através do Vedanta, para alcançar a transcendência, embora ambas com o mesmo objetivo da iluminação espiritual com a realização do supremo.
Aos olhos do Ocidente, introduziu a meditação como uma prática regular destinada à consolidação da concentração, a essência de todo o conhecimento. O conhecimento, que deve ser unido e agregado ao trabalho, ao amor e à mente meditativa, para um melhor comportamento consigo e com os outros e para um maior amadurecimento humano. Enquanto a mente é treinada para se fixar em algo, gera-se a capacidade de fluir numa corrente inquebrantável, que supera as barreiras da perceção e se restringe à interioridade (o samadhi). De uma postura que seja confortável estar durante um longo período de tempo, onde as correntes nervosas passam pela espinha dorsal, que não deve sustentar o peso do corpo, mas antes ser leve e livre.
Com uma postura firme, a concentração deve dirigir-se para a luz divina entre as sobrancelhas e para direcionar a mente ao encontro dessa luz divina. Dessa prática diária é que pode surtir o encontro com a divindade e a subsequente união com esta. Ao libertar todo o apego, o medo e a fúria, o coração, purificado, guia a alma ao encontro dessa divindade, que lhe propiciará aquilo que o meditador pretender. Isto com uma meditação que deve orientar para, no dia-a-dia, o encontro com o conhecimento, com a prática do amor e com a renúncia da materialidade.
Essa prática do amor também fundamenta o serviço social que Vivekananda tanto defendia, advinda dos seus pontos de partida de leitura e de formação, nos quais absorvia a ideia de que cada indivíduo era divindade em si mesmo (Jiva is Shiva) e que a sua responsabilidade era a de servir as pessoas comuns, que não são menos do que manifestações de Deus. Esse serviço é, assim, um serviço à divindade, ao mesmo tempo em que também uma vida ética, responsável e zeladora do meio ambiente, tanto dos animais, das plantas e dos demais recursos naturais, o é, pondo em prática o princípio da não-violência.
Uma vida que se fundamenta num percurso disciplinado de desenvolvimento pessoal, onde a inveja e a suspeição não têm lugar, mas antes a força e as valências da bondade, que se orientam para a ajuda de todos aqueles que tentam ser e fazer o bem. Pureza, paciência, perseverança e cooperação em prol de um bem comum fazem parte desse caminho de fé na humanidade e em Deus, que resulta num caminho de sucesso e de salvação, ao invés de uma fé exclusiva nas divindades. Quando a divindade se encontra ao acesso e dentro de cada um, esse esforço torna-se, verdadeiramente, humano.
É por isso que Vivekananda valoriza tanto a educação, que é o processo de formação do ser humano, dando-lhe maturidade e ferramentas para desenvolver a sua forma de ser e de estar na vida, para lá de uma bagagem de conhecimentos que são transmitidos. É a oportunidade para a assimilação de boas e nobres ideias diretamente para a vida e para o caráter e para a criação de uma autoconfiança e de uma autoconsideração inabaláveis. Defende, assim, uma educação positiva para as crianças, encorajando-as para um progresso gradual, deixando de estar envolto em tanta crítica, e para uma crescente sensação de irmandade entre todas as partes envolvidas.
Para meninos e meninas (as duas asas de um pássaro, que não pode voar sem uma delas), já que Vivekananda não fazia distinção entre ambos, já que não há distinção de sexo naquilo que é a alma. Assim, todos são seres humanos e não rotulados pelo seu género ou casta, sobrepondo-se a essas realidades fisiológicas e sociais. O próprio dizia que a forma de avaliar o progresso de uma nação era a forma como as mulheres eram tratadas, alertando para a necessidade do seu próprio país as tratar com maior dignidade e respeito, assim como aos pobres, que notou serem maltratados pelas suas condições sociais, associados a castas de menor grau hierárquico. Da sua experiência, notou, assim, que quase em todo o lado as mulheres eram tratadas com condescendência ou como bens materiais, que servem, simplesmente, para as funções maternais e domésticas. Vivekananda relembra a figura de Sita, uma das personagens mais indianas da própria literatura indiana (no caso, do épico “Ramayana”), que se pauta por valores de pureza, coragem e dedicação.
Swami Vivekananda é um dos testemunhos mais fortes e consolidados do Oriente no Ocidente, já que se debruçou sobre uma realidade totalmente nova para este: o hinduísmo e as suas premissas ancestrais e presente para o bem da humanidade. O indiano contou com uma formação esmerada, que o fez envolver-se nas artes, mas também na própria formação espiritual, que o conduziu ao seu guru, Ramakrishna. Foi muito à conta dele que absorveu a sua sabedoria e a sua vocação social, de atenção com o próximo, para lá da própria iluminação individual. Assim, fez valer o seu diálogo de integração e de conciliação para poder integrar-se na realidade ocidental como alguém legitimado e valoroso na sua vida e obra. Atualmente, continua a ser reverenciado por cá e por lá, como um “santo patriótico” que promoveu o incluir perante a rispidez do excluir, em prol de humanidade unida e munida em prol do mesmo das suas realidades: da sua felicidade.
“Todo o poder está dentro de ti; tu pode fazer tudo e qualquer coisa. Acredita nisso, não acredites que és fraco; não acreditem que vocês são lunáticos meio malucos, como a maioria de nós faz hoje em dia. Tu podes fazer qualquer coisa e tudo, mesmo sem a orientação de ninguém. Levanta-te e expressa a divindade dentro de ti. ”
“Lectures from Colombo to Almora” (1897)