Ano novo, mais do mesmo?
Apesar de a maioria das pessoas não saber a origem da tradição das doze passas, poucos são aqueles que hesitam em ingerir este encardido aperitivo, à medida que manifestam os desejos para o novo ano. Quem diz as uvas secas, também pode dizer as cuecas azuis ou o bater dos tachos. Religiosamente, os rituais são cumpridos, ano após ano, quando, na verdade, a única certeza que temos é que estamos um pouco mais velhos e também mais próximos do final. Para quê celebrar? Fatalismos à parte, se olharmos bem, não há muito mais a assinalar que não possamos festejar noutro dia qualquer. Insistimos em esperar pelo primeiro mês para arrancar com a vida, tomar decisões e, quem sabe, realizar alguns desejos. Motivados pelo êxtase e pela euforia do novo calendário, esquecemo-nos que esta frágil motivação é como o fogo de artifício: acaba sempre mais depressa do que desejamos.
Obviamente que não tenho nada contra quem define metas para o futuro que se avizinha. Ainda assim, não posso deixar de sentir que o otimismo ingénuo e a positividade irresponsável são os maiores inimigos dos sonhos que ficam por cumprir. No seu manual para a vida, o filósofo Epicteto alerta-nos para a falta de atenção que existe à volta daquilo que precede e que sucede a um determinado objetivo. Este é um dos motivos que leva à baixa taxa de sucesso das passas que ingerimos. Pedimos por pedir, sem questionar se estamos verdadeiramente dispostos a percorrer aquele caminho ou se ambicionamos o que pode advir daquela conquista. Um exemplo clássico é a enchente de novos atletas nos ginásios. É saudável querer ficar em forma, claro que sim, mas quantos têm a disciplina, a força de vontade e a energia necessárias? Quantos estão dispostos a ter cuidado com o que comem, com o que bebem e com o número de horas que descansam? Poucos, muito poucos. E isto não tem mal nenhum, atenção. No entanto, se somos todos diferentes, porque nos forçamos a perseguir as mesmas coisas?
Até podemos ter os melhores ténis, a camisola mais respirável e a aplicação de contar calorias mais avançada, tudo isto será inútil em comparação com a falta de consistência. Se desde o princípio sempre soubemos que não era assim tão importante para nós estar tonificados, para quê enganar-nos? A falta de honestidade para connosco leva-nos a desperdiçar tempo e energia. Saltitamos de atividade em atividade, sem nunca nos entregarmos verdadeiramente a nada. Não paramos para ouvir o que nos entusiasma, o que nos enche o espírito e faz os olhos brilharem. É por aí que temos de ir. Até porque se conseguirmos atingir as tais metas que não são assim tão importantes, o mais provável é ficarmos desiludidos com o esforço que dedicámos versus a satisfação que atingimos.
“Este ano é que vai ser!”, sentimos nós em voz alta, à medida que as doze badaladas se encaminham para o seu final. Acreditar que a vida será melhor e mais bonita é bom. Partilho dessa fé, mas não chega ficar por aí. Otimismo não é sinónimo de inércia e muito menos de irresponsabilidade ou descuido. A crença cega, só por si, apenas serve para vendar a realidade. O verdadeiro otimista não ignora os desafios, os imprevistos ou os riscos. Ser positivo e dizer que vai ficar tudo bem, que tudo é possível, pode ser mais tóxico do que muita da negatividade que anda por aí. Quantos arco-íris foram pintados e afixados por pessoas que não sentiam genuinamente que ia ficar tudo bem? Da mesma forma que temos de parar de ceder aos objetivos de vida genéricos, também é fundamental não sucumbir à pressão para estar sempre bem. Ninguém está, muito menos perante esta avalanche de incertezas. Todos somos feitos de altos e baixos. Só é representado pela linha reta quem já nos deixou. Ninguém é triste por estar triste. O nosso estado emocional não é o que nos define. Faça chuva ou faça sol, o céu é sempre o mesmo. A felicidade não pode ser fingida com meia dúzia de sorrisos mal rasgados. Muito pelo contrário. Quanto mais ignorarmos os problemas (reais), maiores eles tornam-se. Nem tudo se resolve sozinho, muito menos de uma vez só. É preciso assumir a responsabilidade daquilo que se atravessou no nosso caminho. Quando temos um furo no pneu do carro, não ficamos à espera que, por milagre, ele se encha sozinho, pois não? Com as nossas vidas é a mesma coisa.
Ninguém precisa de janeiro para mudar o que quer que seja. Basta um instante. Uma decisão apenas. Garante que as tomas por e para ti. Nem sempre é suposto desejarmos aquilo que (alegadamente) é suposto. Ah! E já agora: Espanha. A tradição das passas nasceu no país vizinho, no final do século XIX.