Entrevista. Pedro Morgado: “Não há uma rede de saúde mental com capacidade de responder a todas as necessidades”
“Os jovens adultos têm surgido em vários estudos como um grupo particularmente afetado pela pandemia.” Assim o revela o psiquiatra Pedro Morgado, professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho, médico especialista do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Braga e investigador no Laboratório Associado ICVS/3B’s. Pedro Morgado lembra igualmente que “ainda não temos uma rede de serviços de psiquiatria e saúde mental com capacidade para responder a todas as necessidades. É necessário mais investimento também nesse domínio.” A afirmação coaduna-se com o comunicado lançado pela OPP [Ordem dos Psicólogos Portugueses], no dia 30 de Abril de 2020], que avisava que só existem 2,5 psicólogos, por exemplo, para cada 100 mil habitantes, o que perfaz um total de 250 psicólogos existentes nos cuidados de saúde primários portugueses.
De salientar que o mesmo comunicado alertava que, “em Portugal, cerca de 23% dos cidadãos já sofrem de perturbações da saúde mental; em conjunto com a Irlanda do Norte, temos a mais elevada prevalência de doenças psiquiátricas na Europa.” [ler aqui] O professor e investigador coordenou, em conjunto com Maria Pico-Pérez, um estudo da Escola de Medicina da Universidade do Minho para perceber o modo como a presente pandemia influencia a saúde mental da população. A par desse mesmo estudo, integrou com Isabel Brissos, do Centro Hospitalar de Lisboa, uma outra investigação, mas desta feita a nível mundial, com investigadores de mais de 30 países, com vista a identificar os efeitos e os fatores que influenciam o impacto da COVID-19 no bem-estar físico e mental das pessoas.
No que diz respeito à saúde mental dos mais jovens e jovens adultos numa situação de pandemia, e ao facto de serem o grupo mais afectado psicologicamente, um outro estudo mas da Universidade do Algarve, por exemplo, aponta na mesma direcção, pelo que se pode constatar que a comunidade científica conflui quando se afirma que as gerações entre os 20 e os 30 anos têm sofrido de forma mais expressiva os impactos psicológicos negativos que podem derivar de situações prolongadas de maior isolamento e fragilidade, como a actual. Aliás, no início do surto pandémico, a comunicação social começou, logo, por relembrar que esta era a segunda grande crise da vida dos ‘Millennials’, que só agora estão a terminar a casa dos 20 e a entrar na casa dos 30, sendo a primeira a crise económica de 2008 que teve como consequência o aumento expressivo do desemprego jovem e a consequente emigração. Há, também, a questão de haver, nesta geração, uma regressão, face às gerações anteriores, do seu poder monetário. Quando questionado , porém, se, realmente, por essas razões, não seria expectável esta geração estar já num limiar, a nível psicológico, susceptível de se agravar com a pandemia, Pedro Morgado aconselha imensa cautela uma vez que não tem conhecimento de dados empíricos que indiquem “que esta geração é significativamente diferente das outras no que diz respeito ao stress, ansiedade, depressão e burnout. O que temos, seguramente, é uma geração mais informada e com maior capacidade para procurar ajuda quando necessário.”
Admite, sim, que passar duas crises de grande magnitude numa fase precoce possa ter impacto, mas considera que “qualquer extrapolação poderá ser excessivamente especulativa.” Deixou explicito, no entanto, quando questionado do porquê os jovens serem os mais afectados, que “aqueles que estão numa situação de maior insegurança pessoal e profissional estão, naturalmente, mais vulneráveis comparativamente com os que têm uma situação estável”, e concorda que há a tendência para uma sociedade mais individualizada e mais “uberizada”: “de facto, a organização económica baseada na “uberização” de tudo está a deslaçar a matriz coletiva que garantia o nosso suporte social. Tendemos a olhar para o sucesso como o produto exclusivo do mérito individual o que gera profundas e injustificadas insatisfações. Do mesmo modo, os fracassos são vividos de uma forma muito mais auto-penalizadora e dolorosa. É preciso considerar todas as modalidades de trabalho de forma a garantir a melhor harmonia entre a produtividade e a saúde dos trabalhadores.” A Comunidade Cultura e Arte entrevistou o investigador, por e-mail, e este será um tema que continuará a ter destaque, uma vez que a falta de uma rede de serviços de psiquiatria e saúde mental com capacidade para responder a todas as necessidades já se tratava, antes da pandemia, de um problema sério para o qual urge uma resposta social.
Em primeiro lugar, porque é que, a nível psicológico, os jovens adultos são os mais afectados pela pandemia? Terá alguma correlação com o facto de ser a faixa etária que, socialmente, ainda não tem uma vida estabilizada e segura?
Os jovens adultos têm surgido em vários estudos como um grupo particularmente afetado pela pandemia. Trata-se de um período da vida em que se verificam várias transições e transformações a nível relacional, afetivo e profissional. É a idade em que se começam a definir projetos de vida e em que, naturalmente, existe mais insegurança. No contexto de uma pandemia como a que estamos a viver, aqueles que estão numa situação de maior insegurança pessoal e profissional estão, naturalmente, mais vulneráveis comparativamente com os que têm uma situação estável. Isto pode ser uma das principais razões para esta particular incidência de sintomas psicológicos negativos nos adultos jovens.
A instabilidade ou insegurança face ao futuro não é, por si, um sentimento mais relacionado à juventude?
Não penso que seja necessariamente assim. Em condições normais, a perspetiva de um futuro é suficiente para atenuar a instabilidade e insegurança que exista numa idade de transição. No meio de uma pandemia, as perspetivas de futuro ficam mais nebulosas e distantes.
Fala-se que esta é a segunda grande crise na vida dos millennials, que ainda só está na casa dos 20 ou a iniciar a casa dos 30 anos. Podíamos encontrar, já antes da pandemia, diversos artigos na comunicação social que relacionavam esta geração, a um nível global, a um aumento de casos de depressão, stress, burnout, e outras consequências ou efeitos psicológicos negativos. Pode-se dizer que esta geração, antes da pandemia, já se encontrava mais susceptível ou perto de uma zona de risco ou não? Qual a sua opinião?
Tanto quanto sei, não existem ainda estudos que nos permitam dizer que esta geração é significativamente diferente das outras no que diz respeito ao stress, ansiedade, depressão e burnout. O que temos, seguramente, é uma geração mais informada e com maior capacidade para procurar ajuda quando necessário.
Mas referiu na resposta anterior que “a perspetiva de um futuro é suficiente para atenuar a instabilidade e insegurança que existe numa idade de transição.” Essa falta de perspectiva não tem um efeito particular ou uma maior repercussão na geração millennial e as duas crises pelas quais passou? Foi uma geração que lidou bem cedo com essa falta de perspectiva de futuro e situações laborais dificílimas e stressantes. Por isso mesmo é que perguntei se não seria uma geração que já estaria numa linha de risco.
Penso que devemos evitar generalizações deste tipo sem o suporte de estudos que o possam demonstrar com clareza. Ainda que possamos admitir que experienciar duas crises mundiais em fases precoces da vida tenha um impacto na saúde dos jovens, qualquer extrapolação poderá ser excessivamente especulativa.
Independentemente da pandemia, a ideia de que vivíamos numa sociedade mais individualizada já era preponderante. Digo individualista, no sentido em que tem uma noção de individualidade mais concreta e aguçada. As novas formas de trabalho em casa ou fora de um espaço laboral não é nova, por exemplo. Concorda com essa ideia? O que acha?
Sem dúvida. O filósofo Byung-Chul Han tem abordado essa matéria de uma forma muito completa. De facto, a organização económica baseada na “uberização” de tudo está a deslaçar a matriz coletiva que garantia o nosso suporte social. Tendemos a olhar para o sucesso como o produto exclusivo do mérito individual o que gera profundas e injustificadas insatisfações. Do mesmo modo, os fracassos são vividos de uma forma muito mais auto-penalizadora e dolorosa. É preciso considerar todas as modalidades de trabalho de forma a garantir a melhor harmonia entre a produtividade e a saúde dos trabalhadores.
Quando o estudo afirma que os jovens adultos são os mais afectados psicologicamente, que efeitos são esses? Estamos a falar de aumento de stress, insegurança face ao futuro, irritabilidade, depressão? De que forma esses efeitos se traduzem na realidade?
Neste estudo, os jovens adultos apresentaram níveis mais elevados de irritabilidade e de solidão do que as outras faixas etárias. Estes estudo não efetuou o diagnóstico de doenças psiquiátricas pelo que essa extrapolação não pode ser efetuada.
Esses efeitos sentidos actualmente, encontram variantes diferentes consoante o género ou não? Mulheres e homens lidam de maneira diferente ou sentem de maneira diferente essas consequências? Foi possível apurar isso?
Os estudos têm demonstrado que as mulheres apresentam, em média, níveis mais elevados de sofrimento psicológico no que diz respeito a sintomas ansiosos e depressivos. No contexto da pandemia também foi assim. Embora, quando analisámos a capacidade de adaptação, também verificámos que, ao longo do confinamento, as mulheres acabaram por se adaptar de forma mais pronunciada que os homens.
Além da diminuição dos contactos sociais, há a questão da vida amorosa. Como é que ficam as pessoas ou os jovens que já tinham esse lado da sua vida pendente, mas gostariam de impulsioná-la? É também um factor a ter em conta para este resultado do estudo sabendo que, por norma, as relações na juventude ou no início de vida tendem a ser mais flexíveis?
Como referido, o início da idade adulta é marcado pelo estabelecimento de relacionamentos afetivos que, muitas vezes, perduram. Mas cada indivíduo é um ser único nas suas necessidades e expectativas. Seria muito interessante podermos dissecar com maior detalhe as razões para este sofrimento marcado nos jovens adultos.
Pelo que pesquisei, o Pedro adiantou que “os jovens adultos sentiram mais solidão do que os idosos”. Os idosos, infelizmente, representam, por si só, uma camada da sociedade que apresenta índices elevadíssimos de solidão.
Este estudo revelou essa diferença. Mas é precisa muita prudência na análise dos resultados, desde logo porque a amostra nacional não é representativa nas idades mais avançadas, uma vez que a colheita de dados ocorreu através da internet e, como sabemos, o acesso às tecnologias de informação não está uniformemente distribuída na população com idades mais avançadas.
Para os jovens que estejam a passar por uma fase difícil devido à pandemia, que devem fazer ou que atitudes devem tomar, para minorar esses efeitos ou diminuir esse sentimento de solidão?
A manutenção de relações sociais à distância, a prática de exercício físico regular e a moderação do uso das redes sociais têm sido fatores positivos identificados ao longo da pandemia.
Quanto ao acesso à informação e à informação sobre a pandemia. Quando em demasia, claro está, também pode contribuir para esses efeitos negativos? De que forma essa informação pode ou deve ser doseada?
Sem dúvida. A exposição a informações falsas ou alarmistas tem um efeito nefasto do ponto de vista pessoal e social. O ideal será consultar fontes de informação oficiais e órgãos de informação que sejam competentes e credíveis. O sensacionalismo, embora seja apetecível, tem consequências negativas que devemos evitar.
Acha que ainda há, no momento, falta de informação ou preparação por parte das pessoas (e falo no geral, não só nos mais jovens) sobre como procurar ajuda psicológica ou psiquiátrica quando precisa? Há problemas a esse nível? E ainda há estigma quanto a procurar ajuda?
O estigma é um problema muito sério e significativo que estamos longe de erradicar. Penso que há cada vez mais literacia e que tem sido feito um esforço grande para comunicar adequadamente as questões de saúde mental. A grande dificuldade está ao nível das respostas: ainda não temos uma rede de serviços de psiquiatria e saúde mental com capacidade para responder a todas as necessidades. É necessário mais investimento também nesse domínio.