Saudação a Marshall McLuhan
Se a tarefa ao ler Marshall McLuhan fosse concordar ou discordar dele seria demasiadamente ligeira essa experiência. O próprio teve a noção de que a competição face ao meio no qual fez veicular esta amálgama de informações era já considerável, portanto tornando-o deficitário e em larga desvantagem face à densidade ou velocidade de outros meios já em circulação. Pode ser daí que venha a sua necessidade de chocar, da estratégia de nos confundir, para que no final, ficássemos mais esclarecidos. A sinestesia permite afinal a anestesia, tal como a co-existência de tantos meios nos comprova.
É apenas na página 331 (de 361) que nos remete para o objetivo deste livro, que pretende “demonstrar que nem a mais lúcida compreensão do poder de um dado meio pode impedir o habitual “bloqueio” sensorial pelo qual nos conformamos com o padrão da experiência apresentada.” Assim é a estrutura de um livro sem-estrutura, em que ocorrem algumas repetições de termos ou ideias em traços gerais, capítulos que interagem entre si sem começarem ou findarem. Tal como cada meio novo que surge, cada capítulo é um acrescento ao anterior embora por vezes, porventura como os meios, se contrariem (aparentemente) um pouco.
O professor canadiano afirmou uma vez “instead of explaining, I explore”, e felizmente para a leitura desta obra é preciso entender isso mesmo; sortudos aqueles que encontram este seu aviso antes da leitura e ainda assim de pouco valerá. Algumas destas expressões recorrentes são “o meio é a mensagem”, a “era elétrica é uma extensão do nosso sistema nervoso central” e “com a era elétrica dá-se uma implosão do nosso sistema nervoso central”; outras ideias que não são tão presentes em termos de notoriedade repetitiva porém enfaticamente relevantes para a perceção da diferença entre a era mecânica e a era elétrica são “impacto psíquico dos meios”, “aceleração”, o “homem como recoletor de informação e Era da Informação elétrica” e a “sincronia interativa” entre eras e os meios representativos de cada uma; como o próprio afirma na página 267:
“Quando se dá uma aceleração em qualquer setor da economia, os restantes sectores têm de o acompanhar. Em breve, nenhum negócio podia permanecer indiferente à aceleração provocada pela máquina de escrever. Paradoxalmente, foi o telefone que acelerou a adopção comercial da máquina de escrever. A frase: “Envie-me um memorando sobre esse assunto”, repetida diariamente em milhões de telefones, ajudou à enorme disseminação da função do dactilógrafo.” (p. 267)
Se em outros casos existe o hábito de um autor se posicionar deterministicamente de um dos lados da análise da tecnologia — se é benéfica ou maléfica — McLuhan não se permite a esse luxo e faz-nos entender que não existe, por mais beneméritos sejamos ou conscientes dos efeitos das tecnologias, formas de escapar delas e da sua circulação na vida quotidiana. O motivo pelo qual os novos meios surgem, em muitos casos, advém da exterioridade causada pelo surgimento do alfabeto fonético, da visualidade com que o homem ocidental (como tantas vezes define quem, no mundo, é letrado, isto é, sabe ler) dotou a sua cultura. Isto permite-lhe não ser cínico como os (outros) “seres-livrescos”, que embora compartilhem a mesma fonte intelectual — o livro —, ignoram deliberadamente que as eras que precederam a elétrica podem ser todas atribuídas à construção de um “mundo visual” intermediado por tecnologias, a começar pelo alfabeto fonético. Ao juntar a sua análise da sociedade à Literatura (com L grande) ele posiciona-se para além da cisão entre a filosofia da técnica e a ciência da técnica do século XIX, das “duas culturas” de C.P. Snow.
A sua principal contribuição histórica é esta, a de representar a escrita como a primeira tecnologia de todas, sendo esta e as que a sucederam “extensões do homem”. Mas mais, demonstra-nos o “choque” com o qual reagimos à galáxia de Gutenberg e à tipografia nascida com ele, que despoletou a fragmentação no mundo ocidental — o individualismo, o “homem sem reação” — e a introdução da repetibilidade ou a possibilidade da repetição de uma determinada ação com um fim à vista, moldou indelevelmente o tecido social do Ocidente. Para tentar demonstrar alguma consistência o autor vai sempre apresentando exemplos de outras partes do mundo onde a comunicação oral é ainda o principal meio de comunicação, sendo esta a justificação máxima para procurarmos, desde a Grécia Antiga “extensões de nós-próprios” defendendo ainda que a superioridade do Ocidente (nunca descreve o que é ser superior) se deve a esta dicotomia. O alfabeto destribalizou-nos, diz. Deixa também um alerta via David Hume, do princípio da não-causalidade: com isto pretende demonstrar que a evolução tecnológica não tem seguido nenhuma matriz e só chegados ao momento (d) ”a velocidade instantânea, as causas das coisas assomaram de novo à consciência, algo que não ocorria quando tudo se apresentava em sequência e consequentemente concatenado.” (p. 25)
Acima de tudo, podemos concluir que toda a tecnologia são meios para uma extensão do homem mas que nem todos os meios transmitem informação ou comunicação; ou se o fazem, alguns certamente o atingem de formas mais explícitas (telégrafo ou telefone) e não tão tácitas como o caso do vestuário ou o relógio podendo assim perceber que a inclusão de alguns dos exemplos presentes no livro como meios transmissores de comunicação foram incluídas para demonstrar a dimensão da exteriorização da vida no Ocidente, ou a mecanização da vida em plena era elétrica, isto é, da uniformização dela-mesma, não seguindo uma linha de pensamento fixa sendo exemplos de uma coerência alla McLuhan. É difícil distinguir entre tecnologias que interferem na comunicação acelerando-a para níveis extra-humanos, e outras extensões tecnológicas do homem que aceleram a vida ou a destemporalizam mas não são veiculadores de informação per se, não havendo um esclarecimento por parte do autor num tempo em que ainda haveria poucas para fazer a distinção, optando pela sua linha programática sem ter pudor de se ir desdizendo no correr da escrita.
Ainda assim o autor atreve-se a tentar definir tipos de meios — sem incluir todos os que no resto do livro aponta ao largo dele — e atenta uma definição de meios quentes e frios: meio quente contém muita informação, é um meio de “alta definição” como por exemplo a fotografia, o rádio e o cinema; meio frio — “baixa definição” — recebe-se pouca informação e dá como exemplos o telefone e a televisão. Nesta equação inclui também o grau de participação dos utilizadores dos meios — “Como tal, os meios quentes requerem uma baixa participação, ao passo que os meios frios exigem uma elevada participação ou completamento por parte do público.” (p. 35) Mais à frente no livro apresenta uma distinção onde nos faz notar que a partir de Gutenberg os meios surgidos são maioritariamente quentes e fragmentários não deixando nenhuma esfera da sociedade incólume, numa clara contradição ao seu impacto real e sua definição prévia — são os meios frios que exigem maior envolvimento da nossa parte e por essa mesma razão tendem para nos atomizar.
Um dos motivos para isto poderá ser a auto-anestesia que decorre da criação (e diria igualmente usofruto) de novos meios. Num dos capítulos mais clarividentes onde resgata um mito que se encaixa na perfeição para a ilustração do impacto da tecnologia — o mito de Narciso e o seu “auto-abandono”, aquilo a que chama o seu “entorpecimento”, por ter saído fora de si e de falhar em reconhecer no seu reflexo a si-próprio, considerando-se outro e apaixonando-se por esse outro — ele não se apaixona por si próprio. É por aí que quiçá nos viciemos e procuremos extensões de nós-próprios: “A fase de entorpecimento manifesta-se tanto na tecnologia elétrica como em qualquer outra. Quando o nosso sistema nervoso central se expande e se expõe, nós temos de o entorpecer; doutro modo, pereceríamos. Daí que a era da ansiedade e dos meios elétricos seja também a era da inconsciência e da apatia.” (p. 60) É por isso que todas as extensões são também uma “auto-amputação”, conta.
Acontece que na leitura do livro se tende a dar ênfase ou à forma ou ao conteúdo, por em variados momentos a sua forma se imiscuir no conteúdo, ou por a apresentação do conteúdo não ser feito de uma forma tradicional, análoga a outros exemplos ensaísticos. Assim, estamos a cometer uma das principais falhas partilhadas pelos “analistas dos meios”, segundo o autor, referindo-se em particular aos meios eletrónicos. Ao pensarmos que é o conteúdo que determina um meio — aquilo que por ele é transmitido — ignoramos como é transmitido, não olhamos à sua forma e não percebemos assim que por exemplo o conteúdo de um filme é um romance ou de um rádio é a voz humana ou que a forma de um filme é a fotografia desta feita sobreposta noutras fotografias e dotadas de transmissão elétrica; e esta é apenas a forma visual, não o seu funcionamento interno. Existe aquilo a que se pode chamar um “axioma dos meios” por eles se influenciarem mutuamente mas acima de tudo seria redutor fixarmo-nos no seu emparelhamento porque o que está em causa é uma “sincronia interativa” — entre meios e eras, claro — para um mais eficaz “entorpecimento”; talvez no tempo do autor esta conexão se desse em pares mas mesmo já na sua época não se ficava por aí podendo tê-la simplificado para efeitos de pungência argumentativa.
McLuhan teme afinal que a eletricidade nos tenda a retribalizar. Não saberemos se isto quererá dizer perda da capacidade de literacia, nomeadamente da leitura do mundo, uma vez que o que ambicionamos agora é apenas um “envolvimento” e não uma “forma de agir”, a partir do sofá; (e se, talvez com a seriedade com que deve ser encarada esta ilustração, o devêssemos escutar mais atentamente neste determinado ponto?) O perigo de só querer ouvir ou querer apenas ver reflete a ontologia do homo eletricus. (Mas o problema da leitura tal como Pascal pretendia, não é também o do perigo da estaticidade?) Mais uma vez o autor pode estar a querer dar força às suas metáforas por saber que a partir da existência de vários meios de comunicação cada um vai ter de os selecionar e lá está “recoletar”, obrigando-nos a caçar a informação e nesse sentido a tornar novamente em seres tribais. Se tivesse ousado uma teoria da agência ou teoria do poder dos meios de comunicação que pelo seu olhar distanciado poderia ser frutífera talvez nos pudesse ter ilustrado que homens ocidentais aprenderam a ler ou construíram as máquinas ou foram envolvidos nos processos de criação das tecnologias, mas o seu mérito, a ter algum, não reside aí.
O mundo de McLuhan ou a sua aldeia são uma realidade “entre duas tecnologias” as quais dotam a sociedade de uma “velocidade para a qual não foi concebida” que ao mesmo tempo deseja ter acesso à tecnologia; ou como escreve: “Esta capacidade que a tecnologia tem de criar o seu próprio universo de procura não é independente do facto de a tecnologia começar por ser uma extensão do nosso corpo e dos nossos sentidos.” (p. 82) Não existe uma menção à “unidimensionalidade” ou à abstração/invisibilidade que as máquinas induzem na sociedade contudo o autor percebeu, provavelmente antes de muitos, a sismicidade de conexão imediata de distintas partes do mundo, com o perigo mais elevado para as sociedade letradas. Sensivelmente a meio do livro deixa-nos um rasto clarividente:
“Todos os meios existem para investir as nossas vidas como percepções artificiais e valores arbitrários. A aceleração altera o significado, seja este qual for, porque qualquer alteração da informação modifica todos os padrões de interdependência pessoal e política.” (p. 205)
É curioso pensar que este livro se tornou numa referência, que tenha sido idolatrado quer odiado. É certamente pelos laivos de análise “artística”, enfática, — (daquele que vai de encontro às, ou chega antes de outros às, “Portas da Percepção”) — que ganhou muitos adversários, por conseguir entrever (e antever) o modelo socio-económico do presente — que se baseia no processamento de Informação como principal fonte de receita, e que aliás é válido já desde as estradas romanas segundo o próprio e — bem como os efeitos psicopolíticos da ação de muitos dos meios que se viriam a fundir e interagir com os meios da nossa era digital, como mencionado sobejamente no trabalho de Byung-Chul Han — Psychopolitics (2017). Esta é a teia de McLuhan que vemos entretecida, aquela que se conseguiu exteriorizar fora da sua própria teia (o seu livro). Ainda que seja um dos últimos redutos do homem veramente literário, como se percebe pela multitude das suas referências e por consultar algumas fora do seu âmbito académico, da sociologia à psicologia e à economia política, talvez não se possa desculpar alguma ingenuidade e incoerência. Resta indagar de que forma reagiria e que postura adotaria à capitulação da era de Gutenberg — esta que é agora a era de Zuckerberg.