Entrevista. Inês Homem de Melo: “Os doentes expressam o mesmo sintoma de formas diferentes, e varia conforme a cultura em que estão inseridos”
“O modelo de saúde mental em Portugal é muito medicocêntrico e há muito poucos psicólogos. É muito frustrante.” Quem o diz é Inês Homem de Melo, médica interna de psiquiatria no Hospital Magalhães Lemos, no Porto, e no Centro de Respostas Integradas (CRI) Porto Ocidental. Os CRI, que fazem parte do SNS português, constituídos por equipas de psiquiatras (os médicos destas estruturas), assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e técnicos psicossociais, centram-se no tratamento de dependências, sejam estas químicas, alcóolicas ou comportamentais, tal como acontece na adição do jogo. À semelhança dos Centros de Saúde, têm o objectivo de funcionar dentro do espaço das cidades em aproximação com as populações. O seu acesso é completamente directo, aberto e gratuito, visto ser um serviço público. Qualquer pessoa que o deseje pode por si mesma, através de um amigo ou médico de família, recorrer a uma consulta nestes espaços, é só tentar averiguar qual o centro mais perto de si. No último mês de Dezembro, a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) organizou e tornou público nas suas redes um webinar sobre saúde mental tendo, justamente, como convidada Inês Homem de Melo. Com orientação de Maria H. Viegas, abordou-se, entre muitos outros tópicos, a forma como se deve ajudar alguém (familiar ou amigo) que precise de ajuda psicológica. Basicamente, como é que essa abordagem deve ser feita?
Falou-se, igualmente, de como um estudante, por exemplo, poderá enfrentar as alturas de maior stress quando o estudo se intensifica e a matéria se acumula. A Comunidade Cultura e Arte achou o webinar muito pertinente e, como tal, convidou Inês Homem de Melo para uma conversa sobre a saúde mental em tempos de pandemia (como enfrentar este novo confinamento em casa), o que os estudantes universitários podem fazer para enfrentarem situações de maior stress, sem esquecer, claro, algumas dicas sobre como abordar ou ajudar alguém, numa primeira fase, que precise de ajuda a nível mental — como deve ser feita a primeira abordagem para a pessoa poder recorrer, depois, a uma ajuda especializada. A falta de psicólogos no SNS foi outro assunto abordado. Para a psiquiatra, “deveria haver muito mais psicólogos do que psiquiatras. O psiquiatra pode fazer uma gestão do caso, deixando o psicólogo como terapeuta de referência — alguém que vê o doente com mais regularidade e que pode investir numa psicoterapia para levar a cabo mudanças mais de fundo, que não tenham a ver com medicação.” Um dos aspectos positivos da pandemia foi, justamente, uma maior divulgação da saúde mental e a consequente exposição das insuficiências dos serviços. O desenvolvimento da telemedicina, a seu ver, também foi importante. Não é que seja um modelo ideal, mas em muitos casos permite o acompanhamento de pacientes que, devido à sua localização geográfica ou mobilidade reduzida, agora podem ter direito, pelo menos, ao seu pequeno “Check Up”, o que é sempre bom. “O SNS é pai de todos, e tem de ser pai de todos por igual.”
Na sua entrevista no webinar referiu que a psiquiatria também era um exercício de linguagem, da palavra. Poderia explicar melhor o porquê?
No resto da medicina, as pessoas estão habituadas a ter os seus diagnósticos comprovados com base em exames. Vou dar um exemplo — um tumor encontra-se num RX, num TAC ou até numa biópsia. Uma pneumonia, por sua vez, num exame aos pulmões. Até na gravidez, o teste é feito através da urina, do sangue ou de uma ecografia. Em toda a medicina, portanto, existem exames para comprovar o diagnóstico — uns mais complexos do que outros mas, geralmente, o médico tem algo palpável para justificar o diagnóstico. Na psiquiatria, pelo contrário, começamos logo por não ter nada. Às vezes os doentes perguntam assim, “ah, mas como é que me faz um diagnóstico só por estarmos aqui os dois a conversar, só com base numa conversa?” Eu costumo dizer que a palavra, em psiquiatria, é o nosso estetoscópio! A comparação mais simples seria a auscultação — enquanto o médico do corpo usa o estetoscópio para ouvir os pulmões e o coração, nós ouvimos apenas o que o doente nos diz. E isso é toda uma arte. É a arte de ouvir o doente e tentar deslindar o que nos está a tentar dizer, porque cada pessoa fala à sua maneira.
Os doentes expressam o mesmo sintoma de mil e uma formas, e a forma que utilizam é sempre tingida pela cultura em que estão inseridos e pela língua em que falam. Mesmo dentro da língua portuguesa, a expressão emocional pode ter gramáticas muito diferentes consoante a zona de Portugal, mais ainda entre países diferentes. Há muito quem use expressões idiomáticas (uma possível conversa: “Como tem estado?”, “Tem marés”). Os brasileiros, por sua vez, falam das emoções de uma forma que considero muito bonita e por vezes até mais clara do que os portugueses. E nós temos de ouvir o discurso, com toda a sua subjetividade e poesia, e transformá-lo em linguagem médica.
Está a descrever a necessidade que um médico psiquiatra tem de ir ao encontro ou de perceber a cultura em que o paciente está inserido.
Exatamente. Isso é todo um mundo dentro da psiquiatria, que é a psiquiatria transcultural. Um exemplo extremo seria o de um refugiado, por exemplo, que não saiba falar português, inglês ou nenhuma outra língua que o psiquiatra saiba falar. Aquilo que diz vai ter de ser convertido por um intérprete numa dessas línguas e nós temos de tentar perceber. Uma pessoa poderá ter uma crença mística muito comum no seu país e se calhar, fora do contexto da sua área natal, essa crença irá parecer uma “maluqueira” (digamos assim), para um português, por exemplo. Mas há que triar o que é uma crença, o que é normal numa determinada região, e o que será, eventualmente, doença. Mas isso são situações raras, porque a maior parte dos doentes que vamos tendo são portugueses.
Comecei por tratar este assunto da linguagem consigo, por ser psiquiatra. Nem sempre está muito claro para as pessoas em geral, o que está dentro do âmbito da psiquiatria, psicologia ou neurologia. E, quando se fala de psiquiatria, há muito a ideia de que a conversa está fora do âmbito do psiquiatra. Que o que este faz é recorrer, logo e de forma automática, à medicação sem ter muita atenção às idiossincrasias do paciente. Sem querer entrar na própria discussão da medicação (que é todo um outro tema para outras conversas), o que, então, um bom psiquiatra fará, primeiro, será falar com o paciente e, mediante as circunstância do que se lhe apresenta à sua frente, dar seguimento ao caso fazendo o melhor uso das suas competências profissionais.
Isso mesmo. Ainda respondendo à sua primeira questão, temos não só de deslindar o que o doente nos está a tentar dizer mas, também, temos de ter a arte de fazer com que as pessoas falem connosco. Eu costumo dizer que a psiquiatria é a especialidade da entrevista. É engraçado porque nós parecemos uns jornalistas a falar uns com os outros: dizemos que fomos entrevistar o doente.
A anamnese não é?
A anamnese é um termo da medicina toda, mas nunca ouvi um cardiologista dizer, “fiz uma entrevista”. Já os psiquiatras, dizem-no. Falamos assim, “fiz uma entrevista ao doente” ou “como é que correu a entrevista?”, porque realmente é muito parecido. Imagine um jornalista que vá abordar um tema delicado com uma pessoa, ele tem de ter um certo jogo de cintura.
[risos] Sim! Um curso de comunicação também tem uma ou outra cadeira de psicologia.
Nós temos de ter esse jogo de cintura porque também lidamos com alguns entraves difíceis. As pessoas têm muita vergonha de falar sobre o que nunca falaram com ninguém ou têm medo de ser rotuladas, por exemplo. Por mil e uma razões, o psiquiatra tem de ser um mestre da entrevista. Não no sentido maquiavélico ou manipulador, porque o objectivo da extração de informação é sempre para o bem do doente, é o de fazer qualquer coisa para que ele melhore. Mas, para isso, as pessoas têm de nos dizer aquilo que precisamos de saber.
Às vezes, há mães que trazem adultos jovens ou adolescentes e dizem, “o meu filho não fala”. É uma conquista quando uma pessoa se senta com o doente e, a certa altura, gera-se na sala um ambiente de segurança muito grande, um espaço em que aquele doente pode dizer o que quiser. É muito gratificante quando essa pessoa, sobre a qual nos disseram à partida que não fala, nos dá acesso ao seu mundo interno, a experiências muitas vezes dolorosas, e tem ali uma catarse connosco. Portanto, através da palavra nós conseguimos que a pessoa se desvende e também conseguimos fazer gestos curativos, porque a psicoterapia não é mais do que a terapia pela palavra.
Além do ‘Magalhães Lemos’, a Inês trabalha no Centro de Respostas Integradas (CRI). Trata-se de um serviço público para o tratamento de dependências químicas (álcool e drogas) ou comportamentais (como o jogo). Como não é tão divulgado, pode explicar como é que as pessoas podem aceder a esse serviço e como funciona?
A forma mais simples de as pessoas perceberem o que é, é comparar este sistema com os centros de saúde. Portanto, basicamente, numa determinada área geográfica, há um centro de saúde. Não é muito longe da casa das pessoas porque os de saúde, ao contrário dos hospitais, estão nas ruas, no meio da cidade, estão camuflados quase — são casinhas. O CRI é exatamente assim, encontrando-se dividido em que pequenas Equipas de Tratamento, antigamente conhecidas por CAT’s (Centro de Atendimento a Toxicodependentes). Funcionam em pequenas casinhas ou em rés-do-chão de prédios, na comunidade, com uma equipa multidisciplinar totalmente especializada no tratamento de dependências. Essa equipa é constituída, então, por psiquiatras (os médicos destas estruturas), assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e técnicos psicossociais.
Alguém que esteja motivado para tratar a sua dependência e aceite esta ajuda, pode dirigir-se a estas estruturas e pedir que lhe seja agendada uma consulta. Não é preciso levar nenhuma carta do médico de família nem de nenhum outro profissional de saúde. A pessoa pode ir pelo seu próprio pé, digamos assim, em qualquer momento. O acesso é completamente directo, aberto e gratuito, visto ser um serviço público.
Passamos um ano complicado, de maior isolamento, e estamos em confinamento outra vez. Por isso mesmo, se tem falado tanto de saúde mental. Numa situação de maior isolamento ou confinamento, quais os sintomas aos quais as pessoas devem estar alerta, indicadores de que será precisa uma ajuda, ou uma ajuda mais especializada?
Em primeiro lugar, é preciso perceber que o mal-estar, nesta situação, é normal. Quando digo mal-estar, digo solidão, raiva, medo e também tédio, porque não dizê-lo! Vejo os meus doentes, por exemplo, com muito tédio, por estarem em casa sem saberem o que fazer, com irritabilidade, insónias e alguma fricção pelo facto de as pessoas passarem muitas horas juntas. Portanto, há uma parte que é normal e que não deve ser confundida com rejeição, abandono e desesperança, que são coisas mais graves. Mas respondendo à sua pergunta, quando é que a coisa está tão grave que a pessoa deve procurar ajuda? É uma pergunta complicada, mas eu diria que é quando a pessoa já nem procura desabafar ou não recorre aos seus habituais métodos de “coping” (métodos que cada um utiliza para enfrentar uma situação adversa) — antes desabafava com este amigo ou aquele, ou tinha o seu “hobbie” do costume que lhe trazia alegria. A pessoa, portanto, começa a demitir-se de tudo, já nada lhe dá prazer, e começa a enveredar por mecanismos de ‘coping’ desadaptativos: consumir substâncias, pensar em morrer, pensar em acabar com a vida ou em fazer mal a si próprio. Fazer mal a si próprio, atenção, pode ser não só consumir substâncias, mas comer compulsivamente, cortar-se ou negar-se à socialização.
As pessoas mantinham, já antes da pandemia, diferentes níveis de socialização. Ou seja, se calhar, para algumas pessoas, era muito importante irem àquele café àquela hora, ou irem para o seu trabalho ou centro social — o que quer que seja — porque isso poderia constituir a única forma de manterem os seus já frágeis vínculos sociais. Como é que essas pessoas ficam agora?
Sim, sem dúvida. Por exemplo, alguém cuja socialização dependesse, exclusivamente, de um centro de actividades ocupacionais. Há doentes meus que vivem sozinhos, não têm família, mas todos os dias iam para aquele centro de reabilitação fazer actividades com outros doentes, em grupo. De repente, o centro fecha e ficam sem ninguém. Também não têm tecnologia, não se podem reinventar muito, porque também não têm capacidade nem tecnologia para isso. Claro que essas pessoas sofrem muito mais. Mas, também, há que ter em conta as necessidades de socialização de cada um. Há pessoas que pré-pandemia que estavam habituadas a viver com pouca socialização.
Pessoas que sabiam estar a sós consigo mesmas.
Sim, pessoas que previamente já seriam muito solitárias. Paradoxalmente, as pessoas com doença mental muito grave podem sentir até têm uma espécie de serenidade com isto porque percebem que afinal está toda a gente a viver da mesma forma que elas.
É uma outra perspectiva interessante!
Até estava a ler um artigo, mesmo antes da entrevista, porque estava curiosa sobre este assunto, e é uma percepção que alguns psiquiatras têm tido — as pessoas que têm doença mental grave parece que não estão a ser tão afectadas (estou a falar de doença mental mesmo muito grave, atenção). Já estão habituadas a viver com níveis de sofrimento psíquico tão grandes, que isto da pandemia quase que nem é nada para elas.
Quando uma pessoa está só, e tendo em conta que o ser-humano é, por norma, social, que efeitos isso pode ter no pensamento. De que forma isso se pode reflectir no pensamento?
A solidão é relativa, nesta altura, porque a maioria das pessoas adaptou-se, tecnologicamente, para que mesmo que viva sozinha numa casa, não esteja só. Mas vamos supor que fica mesmo só — é terrível. O ser-humano não está feito para viver sozinho em nenhuma componente da sua vida. A vinculação aos outros é imprescindível à regulação emocional e o convívio com os outros, do ponto de vista do pensamento, funciona como um barómetro que nos diz se as nossas ideias estão dentro ou fora da realidade. Vou dar um exemplo, quando se diz algo a um amigo e ele diz, “oh, achas? Que exagero!” Quando a pessoa está sozinha, facilmente entra numa espiral de negatividade e de pânico e não há um barómetro de realidade.
Achei curioso que os estudos tenham apontado os jovens como aqueles que sentem mais os efeitos da pandemia, a nível psicológico. Que chegam a sentir um nível de solidão superior ao dos idosos. O que acha?
O início da vida adulta é uma altura em que o jovem ensaia vários papéis antes de se tornar uma pessoa autónoma. Desempenha esses papéis em diversos grupos — é o grupo da faculdade, é o grupo da família, é a turma das aulas de dança (o que for), cada um tem os seus. É uma altura do desenvolvimento de grande excitação porque os pais já não têm tanta (ou nenhuma) palavra sobre os movimentos do jovem adulto. A expectativa dessa fase cheia de experiências está muito viva no imaginário dos adolescentes. É a fantasia das coisas que vão querer fazer quando forem independentes: a socialização, ter experiências românticas, viajar, uma série de coisas. E essa expectativa, ao ser frustrada, é muito penosa. No idoso, as grandes experiências entusiasmantes e transformadoras, ou impulsionadoras de carácter, à partida já foram vividas. Claro que há idosos que também podem passar por experiências entusiasmantes, mas falo aqui do papel das experiências enquanto modeladoras do carácter, que na juventude e adolescência têm um outro peso. Mas os idosos também vêem suas expectativas frustradas, atenção — nem quero pensar nos avós que agora não vêem os netos, ou pior do que isso, nos avós das crianças que nasceram agora nesta fase. Acaba por ser, igualmente, uma experiência muito penosa. São, no entanto, pessoas cujo estilo de vida já passava, muito, por pequenos grupos.
A nível das camadas mais jovens, por exemplo, uma experiência particularmente triste a que tenho assistido, é a experiência do início da faculdade. Cada um está na sua casa a ter aulas e não conhecem ninguém. É preciso ver que quem inicia a faculdade se vê inserido num grupo totalmente novo, sem conhecer ninguém, sem direito ao ritual de passagem (vale o que vale mas é um ritual de passagem) que é praxe, e as outras experiências académicas — ficam privados disso tudo. São as fantasias que vivem no adolescente e no pré-universitário e, agora, vêem-se completamente privados de tudo isso, o que provoca uma frustração brutal. Outra consequência, e aqui aplica-se o que eu dizia há bocado do pensamento em rédea solta, quando estou em casa a deparar-me com o quão difícil é esta cadeira (disciplina), e com a quantidade de matéria que eu tenho para estudar, não tenho ninguém a quem me queixar. Não tenho o meu colega para me dizer, “pois, também acho, isto é horrível”, assim ao vivo e a cores todos os dias. É muito fácil, assim, o jovem entrar numa espiral negativa e achar que não vai conseguir, que o que está a estudar não tem ponta por onde se lhe pegue, porque não há esse tal barómetro da realidade que o confronto e a comunicação com o outro, ao vivo, lhe oferece.
Lembro-me que, no webinar, deu conselhos aos estudantes de medicina para superarem o stress ou a tensão, quando o estudo se torna mais exigente. Pode dar esses mesmos conselhos para qualquer estudante que esteja a passar por essa mesma tensão?
Pegando nessa questão do webinar, o ideal será essa pessoa ter uma actividade de lazer que nada tenha a ver com o que está a estudar. É ao gosto de cada um. Há pessoas que vão mais para as actividades artísticas, que têm provas dadas quanto à sua efectividade no que toca a aliviar todo o tipo de pressão psicológica. A pessoa pode pintar, escrever, tocar um instrumento — tudo coisas que se podem fazer em casa. Há muitos cursos online, que a pessoa pode aproveitar, alguns grátis. A actividade física também é muito importante. Dependendo da pessoa, o exercício pode ser com ou sem máquinas, pode fazer aulas online de dança — depende mesmo da pessoa e há imensos exercícios disponíveis, para vários gostos. De um ponto de vista mais intelectual, é giro tentar aprender uma língua nova e ter aulas de conversação depois, por exemplo. O céu é o limite. A pessoa tem de ser criativa e, por muito que lhe pareça que é uma perda de tempo, a verdade é que não é, porque a produtividade não é directamente proporcional ao tempo que se passa a fazer uma determinada tarefa ou a estudar.
Quando é para estudar, é para estudar, mas intercalar com uma outra actividade quando a pessoa sente que já não tem rendimento no estudo, ajuda depois na concentração, quando voltar a pegar nos livros. É que às vezes, estar tempos e tempos a recalcar na mesma coisa, quando a pessoa já está saturada, é contraproducente e o estudante, como se costuma dizer, “já não vai mandar nenhuma para a caixa”, não é?
Mas é mesmo assim. Isso está mais do que estudado. Quase parece um paradoxo, mas a verdade é que quanto menos tempo a pessoa tem para estudar uma determinada matéria, mais eficiente é forçada a ser. Portanto, havendo muito tempo, a pessoa vai-se permitir usar métodos de estudo que não são, em nada, eficientes e, por exemplo, ceder a uma série de distracções. É mais um vídeo no youtube, mais isto, mais aquilo, mais uma mensagem para um amigo e mais outra e, de repente, o tempo voou e não se fez nada. Enquanto que se estiver, por exemplo, duas horas numa aula de guitarra, são duas horas a menos, mas a pessoa pensa, “”aiaiaia” que eu tenho pouco tempo, vou pôr o telemóvel offline, vou estudar o mais importante”, e, no final das contas, aprende-se muito melhor, porque está-se com o cérebro muito mais activo, depois de uma actividade criativa que deu prazer e está-se com outra disposição.
Um outro assunto do webinar e que pode ser proveitoso para estes tempos, é o modo como alguém deve lidar com uma pessoa que precise de ajuda. Qual é a maneira certa de se dizer a alguém que precisa de ajuda a nível mental?
Há um conjunto de perturbações mentais nas quais a pessoa não tem ideia nenhuma de que está doente ou de que está diferente do seu habitual. Ou então, se tem essa noção, encontra-se em negação e ainda não se confrontou com o facto de que precisa de ajuda, de mudar. Abordar esta temática junto de alguém querido, um familiar ou um amigo, pode ser uma experiência difícil. A pessoa pode não reagir bem, pode sentir-se estigmatizada (a doença mental — e isso é todo um outro tema — ainda é sujeita a muito estigma), portanto, esta é uma conversa difícil, mas que deve ser tida as vezes que forem precisas, até a nossa pessoa querida se permitir ir fazer uma avaliação por um profissional de saúde mental. A maneira certa de fazer isto é num ambiente controlado, seguro para a pessoa, numa altura em que estejam sozinhos — não é num jantar de família, não é com outros amigos a ouvir e, muito menos, no meio de uma discussão. Algo que muita gente faz é isto, por exemplo, “pois, se tu não bebesses tanto”, aos gritos — isso, nem pensar. Tem de ser quando a pessoa está no seu melhor e não no seu pior, não num momento de fragilidade, não num momento de poder sobre o outro. Pode avisar-se previamente, numa conversa, “olha, há uma coisa que te quero dizer”, para dar importância ao que vai ser dito e, depois, a sós, dizer à pessoa que nós estamos preocupados e que achamos que a pessoa poderia beneficiar de ajuda. Mas estas são as palavras que para muitas pessoas são desconfortáveis de ouvir. Havendo uma reacção menos boa, há pessoas que desistem, mas não há que desistir! Há que ter esta conversa mais vezes. Podemos começar por coisas mais fáceis como, por exemplo, dizer, “noto que não andas a dormir bem” — o menos estigmatizante possível e, claro, nunca utilizar termos como “maluco”, “tolinho”, essas coisas que as pessoas dizem. Tentar falar também sobre o nosso sofrimento pessoal, “estou a ficar muito nervosa com isto” ou, “para mim era muito importante” ou ainda, “nem tenho dormido a pensar nisto”. Ou seja, frisar como seria importante para nós a pessoa estar bem e se, eventualmente, a pessoa se disponibilizar, facilitar a procura de ajuda: marcarmos nós a consulta, oferecermo-nos para ir com ela, pagarmos a consulta se for preciso. Se, mesmo assim, a pessoa doente continuar a recusar ajuda, havendo uma situação de risco, poderá ser necessário falar com urgência com o médico de família do doente para que seja tomado outro tipo de medidas.
Mas voltando à questão da pandemia e do confinamento. O que é que as pessoas podem fazer para facilitar esta nova estadia forçada em casa.
Em primeiro lugar, temos de compreender que o homem é um ser de ritmos. Os ritmos da noite, os ritmos do dia, os ciclos menstruais, as estações do ano, tudo isso afecta muito o ser humano. Há uma tendência, quando se está em casa e já não há necessidade de se estar num determinado sítio a uma certa hora, para viver em total disrupção dos ritmos — e isto é péssimo para a saúde mental. Esteja a pessoa em teletrabalho, em lay off ou desempregada, estando em casa, deve comportar-se tal e qual como se estivesse a ter uma vida activa — nunca é demais sublinhar isto. A pessoa tem de acordar de manhã, tomar banho, vestir-se (eu digo acordar de manhã, não é acordar às 11.00 ou ao meio-dia, é de manhã) e manter os horários o mais parecidos com a vida antiga que tinha. Manter o ritmo e não descurar as coisas mais básicas como tomar banho, vestir-se e tomar o pequeno-almoço — isso é muito importante.
Sim, em casa há sempre essa tendência de se misturar tudo e flexibilizar os horários.
Isso é um perigo! E esta questão dos ritmos também se prende muito com a luz solar. Isso está mais do que estudado. Não é preciso estar a apanhar sol na varanda, mas tem a ver com o estar acordado e deixar entrar luz pela janela — isso faz muita diferença no estado psicológico. Tenho ouvido algumas pessoas contar que agora, em pandemia, não tendo obrigações, se deitam às 04.00 e acordam, sei lá, ao meio-dia, 13.00 ou 14.00. Isso repercute-se muito na saúde mental. Depois, caso estejam em teletrabalho, essas pessoas têm de arranjar uma forma de não misturar trabalho com lazer. Há pessoas que, como estão ali por casa, misturam tudo e, às tantas, ganham raiva às suas tarefas de lazer porque as começam a associar ao trabalho. É para trabalhar, é trabalhar, é para lazer é para lazer — não fazer uma amálgama disso tudo.
Daí ajudar muito manter um horário fixo, certo?
Claro, porque senão a pessoa fica com a sensação de que trabalha o dia inteiro.
Então, daí aquela noção de que o teletrabalho pode, até, ser mais exigente? Podemos transferir trabalho para outras alturas que eram destinadas a lazer.
Exactamente, e depois há outra questão muito importante que é ter os meninos em casa. Este é um enorme desafio para muita gente. Outra coisa muito importante, é fazer um consumo moderado de notícias sobre a covid. Não vale a pena estar sempre a ouvir notícias sobre o mesmo assunto. As pessoas estão muito aflitas com isso. Ainda por cima, há notícias que são demasiado alarmistas ou, então, falsas, o que acontece muitas vezes com as redes sociais. Convém ver numa determinada altura do dia e numa determinada fonte fidedigna e chega. Já se sabe o que se está a passar, as medidas preventivas são as mesmas, à excepção de um ou outra regra que vá mudando, mas não é preciso estar sempre, sempre a ver notícias disto.
Depois, outras coisas que também são transversais, não são só de agora, é o exercício físico. Não é proibido fazer exercício físico ao ar livre [individualmente e perto do recinto de casa, com comprovativo de morada]. Portanto, podemos pôr um fato de treino e sair para fazer exercício físico segundo as recomendações. São pequenas coisas que fazem muita diferença na cabeça. É necessário compartimentar o dia — agora é para isto, agora é para aquilo. E claro, fazer uma dieta saudável, o que é sempre válido. Depois, a convivência familiar, estando toda a gente enfiada em casa, é um grande desafio. Vi em consulta muitas famílias desorganizadas por causa disto. Ninguém está habituado a passar tantas horas com o marido ou com a mulher. Não é suposto porque cada um tem a sua vida e, depois, reúnem-se ali umas horas por dia. Isso foi um grande desafio e, como tal, o segredo é haver um espaço para cada um e não estarem ali sempre, sempre, sempre juntos. E quando digo isto, não quero dizer, literalmente, que tenham de estar em sítios diferentes da casa mas criarem, pelo menos, uma barreira divisória fictícia — cada um está no seu mundo e, depois, a certa altura, estão juntos. Pela falta de um espaço privado, alguns doentes fazem teleconsulta dentro do carro, na casa-de-banho, ao mesmo tempo que passeia num parque…já vi de tudo! Portanto, é importante que cada um tenha o seu espaço dentro do possível. Agora, isso requer muita criatividade porque há famílias a viver em casas muito pequenas.
Mas mesmo em espaços pequenos, o saber estar em silêncio também pode ser uma forma de respeitar o espaço do outro
É isso, é isso. Quanto à questão da convivência aumentada, encontrei pessoas que tiveram uma experiência extremamente positiva, principalmente pessoas com crianças que me disseram, “não conhecia os meus filhos, achava que conhecia mas não conhecia e foi muito giro, inventei umas quantas brincadeiras.” Portanto, as pessoas mais criativas prosperaram muito nesta fase com os filhos em casa. Nem tudo foi tenebroso com o facto de se conviver 24 sob 7 com os familiares — houve, também, pessoas com relatos muito positivos. Portanto, o que eu aconselho é a criatividade.
Acha que este é um momento crucial para as pessoas ganharem consciência da importância da saúde mental?
A sensação que tenho é a de que a pandemia, apesar de tudo, trouxe uma coisa positiva para a saúde mental — o facto de a comunicação social ter começado a falar muito disto e haver, nomeadamente, alguns “coming outs” de famosos. Parece que, de repente, a saúde mental está na moda e, isso, foi uma coisa muito positiva para desestigmatizar a procura de apoio psicológico. Além disso, as inúmeras linhas de suporte que surgiram acabaram por pôr a nu a insuficiência dos cuidados de saúde mental em Portugal. Se tem de haver voluntários, é porque aquilo que existe não dá, não chega.
Há, no momento, 2,5 psicólogos por 100.000 habitantes. Só 250 nos cuidados de saúde primários.
Pois, é uma coisa que me entristece muito, a carência extrema de psicólogos nas escolas, nos centros de saúde e até mesmo nos serviços de saúde mental.
E há outro factor. Por exemplo, na minha cidade, houve uma altura em que os centros de saúde ora tinham, ora não tinham psicólogos. Muitas pessoas ficam, a dada altura, sem a sua terapia ou, então, estão sempre a trocar de profissional o que, também, não é muito bom porque pode pôr em causa a tal confiança que custa ganhar ao terapeuta — um processo nada fácil, por vezes.
Mas pior é mesmo não haver nenhum. Deveria haver muito mais psicólogos do que psiquiatras. O psiquiatra pode fazer uma gestão do caso, deixando o psicólogo como terapeuta de referência — alguém que vê o doente com mais regularidade e que pode investir numa psicoterapia para levar a cabo mudanças mais de fundo, que não tenham a ver com medicação. Mas não é nada disso que se verifica. O modelo de saúde mental em Portugal é muito medicocêntrico e há muito poucos psicólogos. É muito frustrante. E mesmo os poucos psicólogos que existem, estão distribuídos de uma forma muito desigual. Um doente do distrito da Guarda vai ter muito menos acesso à saúde mental do que alguém do distrito de Lisboa. O que é perverso, não é? O SNS é pai de todos, e tem de ser pai de todos por igual. A pandemia pôs a nu a insuficiência dos serviços, colocou as pessoas a falar de saúde mental, tudo o que a psiquiatria sempre quis — quanto mais se falar, menos estigmatizada ela é. E, também, trouxe a questão da telemedicina, que acaba por ser uma inovação que pode vir a ser muito importante. As pessoas de zonas mais desfavorecidas poderão recorrer à telemedicina e, assim, ficam numa condição de maior igualdade. Olhe as pessoas muito idosas ou com mobilidade reduzida, por exemplo, que não seja por isso que não têm consulta com a regularidade desejada. Às vezes, na doença mental grave, podemos fazer pequenos ‘check ups’, não digo consultas enormes, mas pelo menos ligar e estar um bocadinho presente com a pessoa, saber se está tudo bem, se não está. Isso tornou-se possível e acho que vai ser importante na questão da saúde mental. Não é que adore, porque prefiro mil vezes ver a pessoa ao vivo e a cores, mas se não for mais nada, isso já é muito bom! Além disso, podemos ver a casa da pessoa, o ambiente em que ela vive. Encontramos algumas informações novas e giras. Descobri que alguns dos meus doentes, e isso não sabia, fazem imensas artes plásticas e estiveram a mostrar-me pela casa as coisas que têm feito e os animais que têm. Dá para a pessoa nos mostrar muito mais de si do que aquilo que se pode mostrar num gabinete. Nesse sentido foi uma experiência boa para a psiquiatria, eu acho.