“Exército de Precários”, do Fumaça: jornalismo que nos torna mais aptos a compreender a sociedade em que vivemos
Quando acabei de ouvir os quatro episódios (de oito) da série documental “Exército de Precários” senti que este jornalismo do Fumaça é, em boa medida, aquilo que sempre se esperou do jornalismo. A série está bem documentada, é precisa e ouve as pessoas. Vai ao fundo da questão e mostra o quadro todo. Enfim, é o jornalismo pelo qual grande parte da sociedade atual clama sem saber e, acima de tudo, precisa. A fórmula é simples, o que não significa facilidades de alguma ordem.
“Exército de Precários” é uma grande reportagem, cuja investigação despreza o imediatismo, desvia-se do facilitismo e transforma o tempo em aliado, enquanto a maior parte das redações comerciais o tem como adversário. Tal como uma nuvem de fumaça que se preze, este trabalho é para ser apreciado e absorvido, dele retirando-se prazer por se estar informado e, consequentemente, mais apto a compreender o meio em que vivemos.
Vamos ao âmago da questão: quem imaginaria que o cordão umbilical da segurança privada em Portugal está ligado aos bastidores sinistros da Guerra Colonial, em Angola? Ou que, de um momento para o outro, milhares de pessoas ficam sem o único rendimento que auferem, o salário? Ou, ainda, que o Estado português é o grande cliente das empresas de segurança privada, tendo despendido mais de mil milhões de euros, em pouco mais que uma década?
Pois bem, estas questões são uma pequena parte de várias dimensões da realidade do setor da segurança. Apesar da primeira remontar à década de 1970, todas se condensam no momento atual, em que assistimos à operacionalização de um projeto político global, denominado neoliberalismo (que, curiosamente, também começou a ser implementado nos anos 70 do século XX), do qual é parte fulcral a desregulamentação das leis laborais. Desregulamentar é o mesmo que dizer embaratecer o trabalho, pagando salários baixos e retirando direitos aos trabalhadorees, conquistados ao longo dos últimos dois séculos. E aqui podemos dizer que a precariedade está para o neoliberalismo como o oxigénio está para a humanidade. Afinal, o título da reportagem não foi escolhido por acaso.
A este espécie de “terror de estado económico” juntam-se outros problemas estruturais da sociedade: a falta de perspetivas e estabilidade dos assalariados, o racismo, a debilidade sindical e a gestão avilanada, por parte do patronato. Todos estes temas são abordados em “Exército de Precários”.
O jornalismo, enquanto arte de contar histórias, está dignamente representado neste trabalho. É provável que os profissionais da área da comunicação se sintam sensibilizados ao perceber que a investigação tinha um propósito inicial, que se revelou inadequado, e que a equipa teve coragem em percebê-lo, admitindo-o e encarrilando pelo trilho mais traiçoeiro, longo e algo obscuro. No entanto, resultou no que agora podemos ouvir e ler aqui.
Atrevo-me a dizer que “Exército de Precários” poderá vir a ser estudado nas faculdades de jornalismo, pois a ligação criada entre pedaços simples da realidade, que está à vista de todos, é utilizada para a construção de uma narrativa complexa, com diversos “players”. Nesta história, a segurança privada está no cerne da investigação, mas quantos de nós, de tantas outras áreas profissionais, nos revemos no que o Fumaça conta?
A Comunidade Cultura e Arte e o Fumaça têm uma parceria de comunicação e por esse mesmo motivo optou-se por não se dar estrelas a esta crítica.