Entrevista. “Deus Cérebro”. “Há um distribuidor internacional que está a colaborar com a RTP na difusão da série”
Produzido, pensado e realizado pela mesma equipa da série “2077 – 10 segundos para o futuro” que, aliás, ganhou o grande prémio da União Internacional de Rádio e Televisão (URTI), “Deus Cérebro” já tem “um distribuidor internacional que está a colaborar com a RTP na difusão da série”, foi o que nos contou Anabela Almeida, guionista e responsável pelas entrevistas aos investigadores e cientistas abordados no “Deus Cérebro”, tanto de cunho nacional e internacional. Quem viu “2077” — uma série pensada para os 60 anos da RTP e que se debruçava sobre o futuro da humanidade — e “Deus Cérebro”, poderia notar numa linha de continuidade entre as duas séries. António Almeida, o realizador de ambos os documentários, corrobora a ideia, até porque sem uma não poderia existir a outra, “não estou com isto a dizer que uma está melhor do que a outra, estou a dizer que me senti mais “maduro” quando peguei no “Deus Cérebro”, depois da experiência anterior.”
Aliás, Anabela chega mesmo a dizer que, para a presente série, “a opção foi abordar vários aspetos científicos, ligando-os ao impacto que têm na evolução, na sociedade, nas nossas vidas no dia-a-dia mas também no futuro. Acaba por abarcar também uma dimensão filosófica, de certa forma.” Anabela Almeida, no guião e entrevistas, e António Almeida, na realização, já colaboram juntos desde 2004. Já António trabalha com a sua equipa há 25 anos e, com alguns elementos, há 30, o que não é recorrente na área. Encontram-se, de momento, a finalizar um documentário sobre o empresário Alfredo da Silva que irá estrear ainda este ano. A Comunidade Cultura e Arte (CCA) contactou, por e-mail, o realizador e a jornalista/guionista. O resultado, sem mais demoras, é o que se segue.
Porquê a vontade de fazer uma série sobre o cérebro? Segundo percebi, a ideia já existia desde 2017, quando Nuno Artur Silva perguntou qual o próximo documentário a realizar depois de “2077 – 10 segundos para o futuro.”
Anabela Almeida: A ideia surgiu-me durante a pesquisa para o “2077 – 10 Segundos para o Futuro”. O facto de se ter descoberto mais sobre o cérebro nos últimos 20 anos do que em toda a história da humanidade e a constatação de que há ainda tanto por descobrir pareceu-me um tema fascinante para explorar. É incrível que praticamente todos os países desenvolvidos estejam envolvidos nesta busca comum pela descoberta do cérebro humano. A dimensão da empreitada é tal que chegaram à conclusão que é impossível fazê-lo cada um por si, só congregando esforços é viável alcançar resultados.
Tanto em “2077 – 10 segundos para o futuro” como no “Deus Cérebro” há um pensamento sobre o ser-humano e como poderá ser a sua evolução no futuro. No caso do “Deus Cérebro”, tal tornou-se bastante mais explícito no último episódio, mas também está muito presente a projecção do ser-humano no futuro. Esta última série seria a evolução natural, ou o passo mais lógico depois de ‘‘2077”? Acha que quem vê as duas séries consegue reparar numa linha de continuidade entre as duas?
Anabela Almeida: Um dos fascínios do cérebro humano é que tudo está relacionado com ele. Tudo o que nós somos, o que fazemos, a sociedade que construímos e o que planeamos construir, tudo passa por este pequeno órgão de 1kg e 300gr, que transportamos sobre os nossos ombros. E o “Deus Cérebro”, no fundo, foi ao encontro desses vários aspetos que ramificam do cérebro humano.
António Almeida: Sim, há uma linha de continuidade entre as duas séries, tanto um tema como outro são fascinantes. Há uma continuidade na realização, até porque não era possível fazer o “Deus Cérebro” sem antes ter feito o “2077”. Não estou com isto a dizer que uma está melhor do que a outra, estou a dizer que me senti mais “maduro” quando peguei no “Deus Cérebro”, depois da experiência anterior.
Mas a equipa que trabalhou com o António, nomeadamente a Anabela, já trabalha consigo há algum tempo, certo?
António Almeida: Eu trabalho com a Anabela a fazer documentários desde 2004. Fizemos uns 20 desde essa altura. Trabalho com a minha equipa técnica há 25 e, alguns, há 30 anos, o que é completamente anormal nesta área.
Como foi, especialmente, a articulação e o entrosamento entre a realização do António Almeida e o guião e as entrevistas preparadas por Anabela Almeida?
António Almeida: Temos uma tática de trabalho: ela concentra-se no conteúdo e eu concentro-me na realização, ou seja, arranjar ideias que possam trazer algo de novo e que ajudem a compreender a história. Entre as muitas coisas que gosto, ponho tudo num “saco”, no final nem 10% aproveito. Eu gosto de me manter afastado do teor da investigação para, depois, poder estar ao nível de um leigo na matéria – um “truque” que eu uso para, no final, perceber o que faz ou não sentido. Depois, arrancamos os dois para as entrevistas. Considero que o documentário que estamos a finalizar sobre o empresário Alfredo da Silva e que vai estrear este ano, tem os melhores enquadramentos dos entrevistados que eu já consegui até hoje.
Pode parecer estranho, mas eu nunca leio os guiões da Anabela, não é por serem maus (risos), é por confiar totalmente nela e dar-lhe espaço, é fundamental dar espaço a toda a equipa. Eu não quero ler o guião, eu quero ver e ouvir o guião, na timeline. Quando o passo para a timeline, temos 3 horas de material. A grande luta é passar para 52 minutos. Desde que a Anabela me passa as 3 horas de material em bruto são 1000 horas de edição até o doc ficar pronto. A parte da seleção final é uma parte muito difícil do processo. Quando tenho de decidir entre duas respostas, vou sempre pela mais emocional. O ritmo e a cadência do documentário é, sempre, uma preocupação que tenho. É necessário manter um equilíbrio entre os talking heads e as ideias que os ilustram.
Tanto “2077- 10 segundos para o futuro” como “Deus Cérebro” têm 4 episódios. Alguma vez chegou a estar em cima da mesa a possibilidade de alargarem as séries a mais episódios ou não seria exequível?
António Almeida: Cada série tem 4 episódios de 52 minutos. Para nós é o ideal. Estes temas teriam com certeza muito mais para explorar, mas, da minha parte, como realizador, prefiro ter um produto compacto.
Tanto no “2077- 10 segundos para o futuro” como no “Deus Cérebro” notou-se uma boa articulação entre a participação de cientistas ou investigadores nacionais mas, também e principalmente, internacionais. Houve essa intenção ou preocupação das séries, assim, ganharem mais abrangência?
Anabela Almeida: Sim, essa foi uma preocupação desde a origem, conseguir chegar aos melhores na área. Felizmente, nessa lista há portugueses e é por isso que eles lá estão. Tal como tinha acontecido no “2077”, também no “Deus Cérebro” o objetivo foi fazer uma série internacional que pudesse ser distribuída por outros países, que tanto pudesse ser interessante em Portugal como em qualquer outro país, no fundo são temas comuns à humanidade. Há um distribuidor internacional que está a colaborar com a RTP na difusão da série.
Quanto à realização de séries de âmbito nacional, do foro de investigação científica, biológica e até das ciências sociais, para serem transmitidas em sinal aberto para o grande público. Trata-se, realmente, de um espaço a explorar? Há, nessa área, uma insuficiência a nível nacional?
António Almeida: Sem dúvida. São temas que só a RTP é que está interessada em investir. Sem a RTP é impossível ter meios para se fazer este tipo de documentários. E no final, o que surpreende é conseguir abordar temas tão complexos, ter boas audiências e um excelente feedback do público em geral e dos cientistas.
Quais os maiores desafios na realização de uma série de foro científico e biológico, como foi ‘Deus Cérebro’? Exigiu cuidados específicos a ter, por exemplo, em relação a tratar um tema puramente histórico ou social? Se bem que é possível chegar a um ponto em que as áreas se cruzam. É impossível falar do cérebro sem focar a história humana e como interagimos nas sociedades que criamos.
Anabela Almeida: Sendo um tema complexo, em que o próprio cérebro tem de se debruçar sobre si próprio, a principal preocupação é descodificar a mensagem de forma a torná-la acessível ao público em geral. Neste caso, a opção foi abordar vários aspetos científicos, ligando-os ao impacto que têm na evolução, na sociedade, nas nossas vidas no dia-a-dia mas também no futuro. Acaba por abarcar também uma dimensão filosófica, de certa forma. Tivemos a preocupação de abordar o cérebro, não como uma entidade autónoma, mas como uma poderosa rede em contacto com tudo o que o rodeia, até o próprio universo. É o cérebro a ver-se ao espelho.
Nas séries de foro científico, o mais usual é fazer uso das entrevistas aos especialistas e, depois, ‘pintar’ o resto do documentário com imagens mais detalhistas ou representativas do que se está a abordar. Houve preocupação em fugir a isso? Por exemplo, houve recurso a algumas dramatizações, como no início do primeiro episódio, em que um penitenciário é salvo mas, depois, acaba na cadeira elétrica.
António Almeida: O pilar desta realização são as metáforas visuais. Dou-lhe só um exemplo: quando se fala nas maiores invenções tecnológicas, pus uma linha de costura a entrar numa agulha, é uma invenção extraordinária. Na realização, faço exatamente aquilo que gosto, nem mais nem menos. É impossível estar a realizar e a pensar o que vão achar do produto final, quer sejam as audiências, a crítica, o público… A única coisa que eu posso fazer é ser honesto comigo próprio e fazer exatamente aquilo que sinto e me dá prazer face aos temas a abordar. A partir daí, claro que está tudo em jogo. Se o projeto atinge os objetivos, ótimo! É sinal de que, provavelmente, haverá mais trabalho depois desse. Existe, da minha parte, uma preocupação estética que possa tornar o documentário visualmente apelativo. É nesse contexto que surgem as curtas de ficção. No caso da primeira curta, sendo uma passagem baseada numa história verídica, faz-nos pensar nas contradições da natureza humana.
Não tenho a menor hesitação em meter tudo o que está à disposição dentro dos documentários. Quero com isto dizer que não tenho qualquer problema em usar imagens de image bank por exemplo. Nos dias que correm, o conceito de realização é diferente do purismo documental que tivemos no passado. Eu afasto-me da linguagem dos que defendem que não se devem usar esses recursos. Eu agarro em tudo o que estiver à minha mão. De outra forma, seria impossível ter, por exemplo, imagens do deserto mais quente do planeta na Austrália, de bactérias filmadas com microscópios nucleares ou as profundezas dos oceanos. Tudo o que acho que ajuda a transmitir a história eu ponho no documentário, independentemente da sua origem. Da mesma maneira que recorro aos tais momentos de ficção ou a soluções como eu a tocar com as baquetes de bateria, ou mesmo a cantar apesar de ser um péssimo cantor…(risos). A abordagem da música no 2º episódio é, aliás, uma das minhas partes favoritas desta série, a outra é a abordagem da consciência no 4º episódio.
A série destaca-se muito pela qualidade da iluminação e fotografia. Eram, realmente, os pontos fortes a apostar? Quais as maiores preocupações a esse nível?
António Almeida: A direção de fotografia faço sempre com o Jorge Afonso, assim como a pós-produção com o Miguel Lopes, o som com o Samuel Rebelo, o Miguel Rodrigues a filmar… Há mais elementos fundamentais, mas trabalho sempre com a minha equipa, pois considero-os de excelência.
A maior preocupação é não me repetir, transcender o que fiz anteriormente, tento sempre e dou tudo o que tenho, se o consigo ou não, isso é outra história. Eu tenho de gostar muito do resultado final, sem compromissos e sem cedências.