É tempo de levantar pedras, não de arremessar petições
Há pouco tempo li a seguinte citação de uma entrevista de Mia Couto ao Fumaça “Até que um dia um velho deu-me o seguinte conselho: há pedras que não se levantam, debaixo delas moram fantasmas que nunca foram enterrados.”
Portugal é um país que segue à risca este pensamento e eu não sou excepção. Habituamo-nos bem cedo a contornar temas, a introduzir com muita diplomacia alguns assuntos e a relativizar muita coisa. É um traço, nem sempre muito positivo do contemporâneo “brandos costumes”. A democracia trouxe-nos debates novos, imensas conquistas sociais e uma série de leis mais inclusivas. Contudo, temos efectivamente falado pouco sobre nós e sobre o passado recente. Todos sabemos que há muitas feridas e muitas pedras que não temos sido capazes de levantar. Do Estado Novo ao papel de resignação da igreja, da Guerra Colonial ao ultimato da descolonização, existem muitas feridas por tratar. Talvez só as próximas gerações serão capazes de as desfazer, mas não deveriam fazê-lo sozinhas.
Uma das características marcantes das ditaduras é o fenómeno da história única. A necessidade de criação de heróis e de construir grandes epopeias para a narrativa das Nações. Umas cómicas, inofensivas e mobilizadoras, outras verdadeiramente devastadoras para a humanidade. No entanto, as democracias são espaços de liberdade. Compreende-se que a retórica da história única não existe. Existem sempre várias perspectivas sobre um facto histórico e várias leituras de todos os processos. Portugal e a Europa estão a viver um processo de confronto. As migrações, a globalização da internet, a circulação e o acesso dos países colonizados à educação confronta-nos com o nosso passado recente. Poderemos continuar a não querer levantar pedras, mas essa ação já não depende só de nós. Este confronto com o passado é a oportunidade para pensarmos a nossa história recente. Confrontar, debater, estudar e aprender para depois podermos seguir em frente. Não quero com isto dizer que uns estão certos e outros errados. Até poderão estar todos certos e todos errados segundo o seu lugar de fala. Mas uma coisa é certa, estamos muito pouco habituados ao confronto de ideias em Portugal. Muita cacofonia, debatemos muitos faits divers, esmiuçamos minorias, mas contornamos os assuntos centrais da cultura portuguesa.
Na semana passada morreu um militar português, herói para uns e traidor para outros. Consigo perfeitamente perceber estes dois lados da moeda. Isto porque há muito por falar sobre a Guerra Colonial e acho que esta pode ser a oportunidade para o fazemos. Conheço histórias hediondas de parte a parte. Típicas de uma guerra. Conheço muita gente que ainda vive perturbada e que não consegue levantar as suas próprias pedras.
Fora as perturbações claras e os relatos que tenho de conterrâneos e familiares mais afastados, parte da minha família central ficou desfeita com a morte do meu tio que foi combater para Moçambique. Os pobres jovens das aldeias não tinham como fugir, iam para defender uma terra que não sentiam como sua, sem formação e com uma arma na mão. Sem nunca terem ido a Lisboa, apenas com a cartilha do Estado Novo como referência, entregavam à “Nação” a sua juventude com a certeza de que aquela guerra não era sua. O meu tio Diamantino Sousa morreu lá e, com ele, parte da minha família. A morte anunciada e a chegada do corpo passados dois meses foram dois duros golpes aos quais a minha avó não resistiu.
Mas voltando à polémica figura, que eu desconhecia até então, compreendo que esta suscite vários olhares. Contudo, só não consigo compreender, e acreditem que me deixa muito mais envergonhado do que outra coisa qualquer, a infantil petição pública que aclama pela deportação de Mamadou Ba. Mais de 25 000 concidadãos acham que é legítimo deportar pessoas por terem opiniões diferentes. Uma petição que junta racismo, xenofobia, totalitarismo ou, pelo menos, a incapacidade de nos confrontarmos com vozes que têm entendimentos diferentes da história.
Estive a tentar perceber quem era Marcelino da Mata e percebo que de unânime não tem nada. Esta petição é a prova que uma democracia nunca será adulta enquanto não proporcionar um verdadeiro debate sobre si mesma. Há muitas histórias para contar, muitas doenças mentais para compreender, muitas feridas por sarar, muitas pedras por levantar.