Ana Moura em modo Radiohead
Com bastante estrondo, Ana Moura anunciou esta semana o final da relação com as estruturas que suportavam a sua carreira e deu o grito de Tarzan rumo à independência. O corte quer com a editora Universal, quer com a agência Sons em Trânsito é algo surpreendente e bastante ousado mas não necessariamente revolucionário. Em 2007, os Radiohead encetaram uma operação semelhante ao deixar para trás uma relação de quase 15 anos com a poderosa EMI para “vender” o álbum In Rainbows, através de um site criado para o efeito, ao preço que cada um entendesse pagar. Cortar as vazas com a multinacional representava muito mais do que pôr fim a um contrato discográfico que chegara ao fim sem desejo de renovação por parte da banda. Era, tal como agora com a fadista, uma ruptura com a indústria tradicional a fim de recuperar o controlo sobre a obra e poder negociar contratos mais justos. O tempo deu-lhes razão. Feitas as contas, os Radiohead lucraram mais com In Rainbows do que com qualquer outro álbum editado pela EMI, incluíndo o clássico absoluto OK Computer. E nem por isso caíram da Liga dos Campeões.
Já na altura era prática comum disponibilizar-se música para download gratuito. O que não era habitual era esse gesto partir de bandas com nome, estatuto e geradoras de dígitos. Tal como acontece agora com Ana Moura que, ao contrário dos Radiohead, não esqueceu o quanto ambas as entidades fizeram pela sua afirmação, deixando um agradecimento no comunicado em que oficializa a separação e anuncia um novo rumo, mais próximo e digital. Creep teria sido eterna sem a assistência da editora? OK Computer seria magnânimo sem ter a EMI nas costas? Os Radiohead teriam uma carreira ascendente sem uma estrutura confiante nas suas qualidades? Nunca saberemos, mas podemos lembrar-nos de todas as melhores bandas desta semana para a imprensa inglesa, que não passaram do primeiro single, quanto mais atravessar o Canal da Mancha; e de alguns outros clássicos como Ladies and Gentlemen We Are Floating in Space dos Spiritualized, nem um mês mais velho do que o álbum do renascimento dos Radiohead, reconhecido sim mas sem a mesma amplitude.
Como se disse, a jogada de Ana Moura é de risco mas um risco calculado. A Universal é uma das três multinacionais a operar no mercado e tinha em Ana Moura uma das maiores senão a maior prioridade. Os números da última década são esclarecedores. Sextupla platina, mais de 90 mil unidades vendidas e 207 semanas na tabela de vendas para Desfado de 2012; tripla platina e 45 mil cópias vendidas de Moura, de 2015. Pela Universal, Ana Moura superou a marca histórica do milhão de discos e ainda que “um novo mundo digital” possibilite tamanha mudança, consumada por exemplo através de um anunciado NFT, se há vozes ainda com peso no mercado físico, ela é uma das poucas. E a Sons em Trânsito é provavelmente a agência de concertos mais influente, em Portugal e no exterior. Tantas vezes se julga a indústria sem grande conhecimento de causa mas neste caso, ao talento de Ana Moura juntou-se uma gestão inteligente e cuidada que trouxe não apenas números mas também reconhecimento, transversalidade e consagração, no fado e não só.
A indústria convencional tem um histórico sem fim de falhanços nas apostas e gestão mas de vez em quando também acerta. A questão aqui nem é essa. No comunicado, é assumido o desejo de “relacionamento com novos públicos”. Algo que a associação recente a figuras como Conan Osiris, Branko e os Pedros Mafama e Da Linha confirma. E em declarações ao Expresso acrescenta que “quando temos sucesso querem à força engavetar-nos. Dizem-nos: ‘tu és isto’. E isso pode ser uma prisão”. Ora, este não é o tempo de recomeçar do zero. Este é o tempo da serviliência ao algoritmo. De alimentar uma máquina sem rosto nem coração que dá aquilo que recebe. Efeitos de uma bolha potenciada pelas redes sociais e amplificada pelas plataformas mais usadas. Se olharmos aos últimos anos, são raríssimos os casos de reinvenção por artistas firmados. A digitalização pode ser uma avenida da liberdade mas também pode ser uma prisão se for dissociada do factor humano.
Além disto, a pandemia e a paragem forçada de concertos e festivais vieram expor injustiças na distribuição dos direitos relativos ao streaming. Diversas vozes de renome, que antes não se preocupavam com os relatórios enviados por estas plataformas, prestaram atenção a estes números e concluíram que desse dinheiro fresco recuperado pela indústria nos últimos anos após anos de queda vertiginosa, menos de 13% chega aos músicos. Isto pode não ser um problema para Drake, Ed Sheeran, Beyoncé ou Taylor Swift mas num mercado pequeno como o português é dramático. E ainda que inteligentemente as palavras de Ana Moura incidam sobre a liberdade artística e não sobre as algemas comerciais, as duas estão inevitavelmente intrincadas nos próximos desfados. Ter um domínio maior sobre a obra é poder controlar todos os factores, incluindo o económico.
À medida que o processo de desmaterialização evoluiu, os antigos contratos entre editora e banda ou artista foram sendo substituídos por acordos de licenciamento álbum a álbum, ou mais recentemente, de exploração dos direitos de um single. É natural que alguns campeões de vendas, ou o que resta deles, olhem para o exemplo de Ana Moura e se questionem se a subordinação à velha indústria ainda é vantajosa. Até porque hoje são eles e as suas comunidades as alavancas do reconhecimento artístico e do êxito comercial. O peso das editoras multinacionais é cada vez mais residual.