Já se pode ouvir “E Ainda…”, novo disco de Carlos do Carmo
Carlos do Carmo
E Ainda…
Ao longo dos últimos anos, e à medida que Herberto Helder (1930-2015) ia oferecendo ao mundo os seus derradeiros tomos de poesia, Carlos do Carmo mantinha um acordo com o seu livreiro habitual: de cada nova obra dada à estampa pelo poeta, ficaria um exemplar guardado, atrás do balcão, à sua espera. E, em cada uma dessas ocasiões, o ritual repetia-se. O fadista folheava os livros, assistia com o olhar àquela dança exímia das palavras que habitavam os textos de Herberto Helder, deliciava-se ao descobrir-lhes os mais variados e íntimos sentidos, e invariavelmente frustrava-se quando tentava, sem erguer a voz, descobrir-lhes uma musicalidade que se desprendesse das páginas. “Sempre gostei muito do Herberto Helder, mas sempre me danou não sentir a possibilidade de o cantar”, confessava Carlos do Carmo há dois anos, quando começou a construir este E Ainda…
Carlos do Carmo, no entanto, manteve-se pacientemente à espreita, sem baixar a guarda. E acabou por apanhar Herberto Helder na mesma rede infalível com que caçou poemas de Antero de Quental, Manuel Maria Bocage, Teixeira de Pascoaes ou Carlos Oliveira e os transportou para o fado. “Eram pessoas que não terão propriamente pensado escrever para o fado, mas tiveram um deslize”, conta. “E eu apanhei-lhes o deslize.” Foi também o que aconteceu, por fim, com Herberto Helder. Nas duas derradeiras páginas de Poemas Canhotos, o último livro que o poeta publicou em vida, o fadista intuiu uma música escondida naqueles escritos finais, e tratou de enviar o texto para que António Victorino d’Almeida confirmasse aquilo que cada célula do seu corpo já sabia: desta vez, havia de cantar Herberto Helder. E havia de fazê-lo sobre uma composição que é toda uma refinada e intrincada tapeçaria harmónica, que leva a voz que canta a perseguir a mão que escreve por linhas que curvam onde menos se espera e não seguem a direito.
Foi por aí que E Ainda… começou. Pela intuição e pela certeza de que Carlos do Carmo tinha ainda fados por cantar. Fados que, nalguns casos, nem suspeitavam que pudessem ser fados. A partir desse momento, a questão que se levantava era se esse desejo antigo de imaginar um poema de Herberto Helder correr dentro da sua voz se bastava a si mesmo ou se, na verdade, havia um novo caudal criativo a anunciar-se. E a resposta não tardou a chegar, por via da habitual inquietação de um homem que, nascido filho de Lucília do Carmo, ainda tentou enganar o destino a cantar temas brasileiros, franceses, italianos e norte-americanos. Essa marca de universalidade, aliás, nunca deixou de se manifestar no seu estilo único, mas sempre sob a forma de achas lançadas para o fogo da sua incandescente paixão pelo fado.
Não será exagero afirmar que a vontade de partilhar esta paixão está por detrás, afinal, dos convites que Carlos do Carmo foi também dirigindo a poetas estranhos à linguagem fadista. Foi assim que, noutras ocasiões, chamou Nuno Júdice, Maria do Rosário Pedreira ou Fernando Pinto do Amaral para o fado, deixando depois que a própria música lançasse o seu charme. Mesmo se houvesse dúvidas iniciais – que as houve –, acabavam tão enredados na malha de sedução da canção que a ela se entregaram sem resistência e continuaram a escrever para outros intérpretes. Desbastar esse caminho para cantores mais jovens que venham a seguir, pondo-os em contacto com autores maiores da língua portuguesa, é, crê Carlos do Carmo, outra das heranças fundamentais que deixa com a sua obra.
Em E Ainda…, Carlos quis “ganhar” Hélia Correia para o fado tradicional. E telefonou à escritora explicando a sua ideia: “Há um fado tradicional que ouvi cantar há muitos anos à Teresa Silva Carvalho, a primeira mulher que conheci a acompanhar-se ao piano”, recorda o fadista. “E aquele fado ficou-me sempre no ouvido – é bonito, tem uma carga entre o nostálgico e o belo.” Pediu então a Hélia Correia cinco quadras para este tradicional composto por João Black (ligado ao anarco-sindicalismo), mas que deveriam ser rematadas, como diria Alfredo Marceneiro, com um “fechanço”. Ou seja, uma última quadra que não deixasse o poema pendurado, nem versos a pedir por outros que já não chegariam.
Quando recebeu o primoroso texto de Hélia Correia, ‘Sombra’, Carlos do Carmo percebeu que já não havia volta a dar e o percurso que tinha pela frente implicava continuar a rodear-se da “Liga dos Campeões” dos fazedores de versos nacionais. E foi então que, dando ouvidos à sua conselheira – na arte e na vida – Maria Judite de Sousa Leal, percebeu que estava também na hora de corrigir uma outra falha do seu passado: a de não ter ainda iluminado o seu fado com a poesia de Sophia de Mello Breyner. E foi Maria Judite a peneirar a obra da poetisa e a colocar diante do marido os versos magníficos, vogando por entre “a voz da guitarra” o “silêncio ouvinte”, que agora escutamos em ‘Canção 2’, musicados por Mário Pacheco, e que juraríamos a pés juntos terem sido escritos a pensar em Carlos do Carmo. Mesmo que tenham demorado cinco décadas a descobrir o caminho para o seu justo guardião. Mário Pacheco, com extrema sensibilidade, dá aos músicos apenas as notas suficientes para que o “silêncio” não seja perturbado e o tema pareça deslocar-se no ar, nunca chegando a poisar e fazer-se terreno.
Sem um plano minucioso e sem um conceito agregador definido, E Ainda… começava então a ganhar balanço e a traçar um desenho que ganhava contornos mais claros e enlevados. Quase sem se dar conta, Carlos do Carmo gizava um álbum que se podia resumir numa pergunta: ‘Por que razão não canto estas pessoas?” Essa interrogação soaria ainda mais intensa, por acasos da vida, graças à resposta tardia, chegada com 20 anos de atraso, de um tema que Carlos do Carmo pedira a Jorge Palma. Era uma daquelas dívidas incobráveis, pelo simples facto de que não se pode apressar a criatividade, nem forçar este absoluto cuidado de criar música e letra para colocar nas mãos e na boca de alguém que, como é o caso, já cantou a vida de fio a pavio. Talvez por isso, Jorge Palma entregou ao fadista uma canção sublime que é tanto “devida” quanto “de vida”, equilibrada com elegância nesse fino arame que oscila entre as tristezas e as alegrias acumuladas ao longo da vida, e que traça um arco do nascimento ao ocaso, acreditando que “corremos com sorrisos nos lábios / de encontro ao mundo em contramão”.
O fado com que Carlos do Carmo nos tem maravilhado, ao longo de mais de cinco décadas, tem esse mesmo sorriso nos lábios. Um sorriso que denuncia, afinal, o quanto sempre recusou a versão mais fatalista do fado, as histórias desgraçadas de sofrimento atroz, cheias de dores e lamentos, cantadas como se o mundo estivesse prestes a desabar – mesmo quando se trata “apenas” de um amor trágico feito em fanicos. Ora, no seu percurso, aprendemos antes a olhar a vida de frente, a descobrir Lisboa e a reflectir sobre o país, a pensar quem somos, o que fazemos aqui e o que nos impele à acção – em tempos sombrios ou idealistas, pessimistas ou esperançosos, mas nunca levianos ou derrotados.
Esse sorriso nos lábios, que não é nunca de comprazimento ou de irreflectido contentamento, pode até ser sardónico, escarninho ou folgazão. E é esse registo que encontramos em E Ainda… quando Carlos de Carmo se entrega, pela mão de dois cúmplices habitais, ao puro divertimento com que Vasco Graça Moura (1942-2014) revisitou o clássico ‘A Casa da Mariquinhas’ (em ‘Mariquinhas.com’), brincando com a prostituição em bairro popular actualizada para a era digital, e à forma original como Júlio Pomar lida poeticamente com a desilusão que o acometeu no período da troika em Portugal (‘Bem Disposto, Então Vá’). Ambos com a música gingante de Paulo de Carvalho, dois subtis achados de composição que permitem aos versos deslizar com uma graciosidade que parece fácil, mas que, pelo contrário, revelam uma aguda percepção do quanto cabe aos instrumentos varrer do caminho quaisquer atritos neste malabarismo com as palavras, próprio de um cantor que – à semelhança de Frank Sinatra – é mestre em puxá-las para dentro e fora do tempo.
Júlio Pomar, elogia Carlos do Carmo, “dá sempre sem dó nem piedade”, mas “nunca acaba azedo”. Neste retrato solto e mordaz de um país em que os filhos voltam para casa dos pais e em que saem “finos e bifanas / para mais é que não há”, esboça-se, afinal, o resto de uma cantiga de protesto, jocosa para com um poder que põe fim à festa mas que bem pode terminar no banco dos réus – literal ou não. Graça Moura, por seu lado, imagina a “formosa Mariquinhas”, de que se ocupara já Alfredo Marceneiro em tempos, numa graciosa recontextualização de uma das mais famosas personagens da História do fado, quando esta se moderniza com a internet e com a turistificação de Lisboa, prometendo os seus serviços e das “amiguinhas mais lindas que já se viu” “a quem quer pintar o sete”. São os dois temas de pendor abertamente popular de E Ainda…, nos quais podemos mesmo ouvir o sorriso cantado de Carlos do Carmo.
Esse sorriso não se desfaz no surpreendente ‘Puxa Avante’, poema de José Saramago de uma espantosa inocência, que Carlos do Carmo foi desencantar a um dos três volumes de poesia publicados pelo Prémio Nobel, em torno de um “lenço de seda fina” que mora no bolso do peito e acode a todas as situações, com que Saramago brinca do primeiro ao último verso. “Comecei a reler o livro e, num determinado momento, paro e encontro um Saramago que eu não conhecia – um Saramago com graça”, recorda dessa repentina revelação. Para amparo musical, Carlos socorreu-se de um fado tradicional, saído da pena de Joaquim Campos, um dos maiores compositores do género, numa melodia simples ajustada ao mote poético, pela qual o fadista navega com o desembaraço de quem conhece este mundo pela frente e pelo avesso. Tal como fez com ‘Sombra’, o poema de Hélia Correia, no pouco ouvido Fado Menor do Porto, um tradicional que tem tanto de beleza vinda do fundo dos tempos quanto de uma densidade que só é possível no aqui e agora.
Em Novembro de 2019, quando Carlos do Carmo se despediu nos palcos no Coliseu dos Recreios, sala nobre da sua Lisboa, havia de desfiar memórias, revisitar uma carreira que teve o supremo condão de popularizar o fado junto de um público alargado que cresceu a ouvir ‘Os Putos’, ‘O Cacilheiro’ ou ‘O Homem das Castanhas’, ‘Lisboa Menina e Moça’, ‘Um Homem na Cidade’ ou ‘Canoas no Tejo’. Mas esse momento seria também o de celebração de toda uma vida a trazer ao fado quem dele desconfiava, a mostrar o fado a quem o desconhecia, a mostrar ao mundo como Portugal tinha uma canção que nasceu nas ruas e sempre as soube cantar.
A tudo isto, Carlos do Carmo acrescentou modernidade, elegância, rigor e cosmopolitismo, sem perder de vista a tradição, mas com a ousadia de lhe acrescentar uma visão pessoal que transformou também o fado enquanto canção. Então como agora, na sua despedida dos discos, as memórias estão presentes, porque ouvimos hoje Carlos do Carmo e ouvimos toda a sua vida e a sua carreira no rasto de cada verso, mas estamos sempre diante do presente.
Agora, no capítulo final, E Ainda… começa como termina. Guitarra portuguesa, viola e viola baixo estendem um tapete para a voz de Carlos do Carmo desvelar os seus fados. “Quando canto sinto-me num colchão de plumas”, dizia o fadista no Coliseu acerca dos três brilhantes músicos que o acompanham – José Manuel Neto, Carlos Manuel Proença e Marino de Freitas. Agora, E Ainda… começa e termina sem se alongar para lá do necessário. Carlos do Carmo vem acrescentar e não repetir-se. Vem trazer palavras novas ao muito fado que brilhantemente já nos deu e vem pedir ao seu público apenas uns breves momentos dos seus dias atarefados e disputados por muitas outras solicitações. “Eu gosto tanto de cantar para vocês”, confessa um fadista que sobre cada interpretação derrama toda uma vida plena e sábia de amor a esta canção. “Eu gosto tanto de cantar para vocês”, ouvimo-lo dizer de novo. “Vejam lá se gostam.”
Gonçalo Frota, Outubro de 2020