O preconceito de Sofia
Lembro-me da história de um jovem talento que vai a caminho da entrevista da sua vida com um dos CEO mais importantes da empresa onde toda a vida sonhou trabalhar e o pai, nesse dia, oferece-se para lhe dar uma boleia. Já em andamento, o telefone toca no carro e do outro lado ouve um, Já estou no gabinete à tua espera, filho. Quem não fica confuso com este dilema? Porque nunca se imagina que o importante CEO é mulher e mãe do candidato. E isso é a nossa cultura a tomar decisões por nós.
Há anos que sinto o dilema que nos rodeia, com a definição da nossa cultura. Como se nos estivessem a obrigar, constantemente, a reaprender o que é que a palavra cultura pode ser. Nos primórdios, parecia sempre tudo tão fácil: O homem era uma coisa e a mulher outra, o pai uma e o filho outra, o português era fácil de identificar na rua e havia os países melhores e os países piores. Éramos assim educados para uma narrativa homogénea mas ficcional, decidida de cima para baixo mas que, estando presente em todos os meios que nos rodeavam, lhe dava carácter factual. Essa era a teoria cultural a funcionar de cima para baixo.
Ainda há muita gente que acha mesmo que a forma como foram educados os protegia da complexidade do mundo, evitando mesmo que essa complexidade existisse. Antigamente era assim, ou no meu tempo, é um dos memes mais poderosos da cultura portuguesa. A ideia que já fomos grandes, e que descendemos desses que antes nos faziam ser dos melhores do mundo, é a ficção mais usada aqui como em quase todo o lado. Mas do respeito pela memória ao exagero dos corpos fora de escala das estátuas dos heróis, vai uma pequeníssima distância.
Confundida com lazer ou acessório de uma tendência política, é na nossa cultura que todos centram o combate, sem o saberem. A nossa cultura é o efeito secundário da nossa organização colectiva, é dinâmica e impossível de controlar. Depois existe o património cultural, que é o espólio incontrolado que herdamos das gerações anteriores, e a criação artística, que é mais do mundo da intenção, do que a cultura. Porque se a cultura não precisa de intenção, a arte sim.
Mas foi sempre mais fácil convencer toda a gente de que a cultura era a arte e o talento de mentes iluminadas e únicas. O famoso conceito de Alta Cultura, onde se inserem as grandes sinfonias, os grandes quadros, os grandes livros, sobrando apenas à cultura popular, as grandes tascas, as grandes anedotas ou as grandes tradições, foi e é a polémica mais popular. Essa decisão de cariz aristocrático sempre visou dividir as massas da arte. Tu não podes aspirar à criação artística ou cultural porque os outros, que conheces, chegaram lá por um milagre divino. E como só Deus Nosso Senhor os pode fazer… tu nunca lá chegarás. Essa impressão de que quem triunfa nas artes já nasceu assim livra-nos sempre de compreender o trabalho e os erros que criaram aquele percurso singular de um artista.
Estamos, assim, presos à ideia de que a cultura é a arte, quando isso não é verdade. Uma matança do porco não é arte mas é cultura, tanto como um texto acabado de escrever pode ser arte sem ser, ainda ou nunca, cultura. Era bom não nos prendermos tanto a conceitos e sermos mais livres na assunção de que muito do que hoje chamamos uma coisa, amanhã lhe chamaremos outra completamente diferente. O exemplo máximo é a confusão entre as palavras criatividade e criação, porque se a criatividade visa resolver problemas anteriores, a criação, só por si, é o motor que cria novos problemas, novas questões, novas perguntas, que precisaram de criatividade para serem resolvidas. Precisamos assim de nos libertar da cultura para chegar à arte? Paradoxal, não é?!
Mas voltemos à história inicial onde para além do dilema da mãe CEO, também lá está o outro dilema, o dilema do pronome masculino na frase um jovem talento, que pode ser usado para ambos os géneros mas que claramente subalterniza um deles, o feminino. O jovem talento pode ser uma rapariga, filha de uma CEO e pode chamar-se Sofia. A Sofia é aqui a metáfora da mulher que ainda precisa de lutar contra o preconceito e de mostrar que o que faz, e é, não depende daquela frase, Nós as mulheres somos diferentes. As mulheres não são diferentes dos homens, nós é que individualmente (não importa o género) somos diferentes uns dos outros.
Assim, o preconceito de Sofia adapta-se a géneros, nacionalidades, etnicidades, naturalidades e, claro, culturas. As mulheres são, os portugueses são, os africanos são, os portuenses são, são todas frases que começam mal. Começam pelo mesmo preconceito de Sofia. Precisamos, assim, de rever o preconceito de Sofia. Sofia não como apenas uma personagem feminina mas como a criatura, que felizmente, nos tem conduzido e liderado as nossas sociedades liberais, desde o iluminismo do século XVIII. Somos uma sociedade que centra a sua filosofia no conhecimento e na sabedoria dos seus maiores. Depois de sermos geridos pela crença, fosse no senso comum como na explicação dos fenómenos naturais, essa Sofia agora criou-nos um preconceito muito sério: Como explicar as coisas que não são possíveis de conhecer e apenas de experenciar? Nisso, a arte é o território dos astronautas e descobridores de novos mundos e a cultura apenas o mundo dos desenhadores de mapas que se lhes seguiram.
Então, como nos libertarmos da nossa cultura, ou pelo menos conseguirmos pensar para lá dela? Claro que há o conto zen da chávena de chá demasiado cheia para receber mais líquido. Temos de esvaziar a nossa chávena e aí que surge o conflito. A aversão à mudança está-nos nos genes e nos memes. Sempre foi assim, já o meu avô fazia assim, porque hei-de eu mudar, e então nasceu outra coisa que normalmente é confundida com a cultura, a arte. Mas isso fica para outra oportunidade onde poderemos falar do para lá do objecto artístico e do criador versus criativo.
Porque, como diria Kris Kristofferson na voz da cantora popular Janis Joplin: Freedom’s just another word for nothin’ left to lose. A liberdade é apenas outra palavra para nada a perder (de facto).