Problema de expressão
De tempos a tempos, o fantasma acorda. O derby Português — Inglês joga-se nas arenas sociais, com berros, caneladas, ressentimentos, muitos comentadores e pouca gente capaz de se ouvir, além de falar. Muito barulho, pouco conteúdo. Sinais dos tempos de bolhas-trincheira que fazem crer que o mundo é só de uma cor, a nossa. Tal e qual o futebol.
Primeiro, foi Tozé Brito no Maluco Beleza a dizer verdades como “não se fura a cantar a inglês”, referindo-se a uma época de deslumbramento no final dos anos 90 quando bandas portuguesas acreditavam que a língua bastava para encher o Royal Albert Hall ou o Apollo. O que espanta não é a declaração, é o banzé que ela ainda gera. Como é que uma ilação tão fácil de demonstrar ainda provoca tanto escarcéu? Só pode ser por ajuste de contas dos que se iludiram com o sonho da internacionalização e acharam que expressar-se em inglês (quase sempre mau) era tão rápido e cómodo como atravessar o Canal da Mancha de comboio, esquecendo-se que em Londres não há apenas o dobro das oportunidades, também há o triplo da concorrência.
Recapitulando o óbvio, nem sempre lembrado: à excepção dos Moonspell, os casos bem sucedidos de exportação são fruto da identidade e não da língua. Amália Rodrigues e o fado, Madredeus, Buraka Som Sistema e a nova portugalidade de Nenny, de Dino D’Santiago ou da Príncipe. Há outros exemplos, claro, mas são uma história diferente. So Get Up, dos Underground Sound Of Lisbon, foi um êxito global mas o sonho da electrónica portuguesa ficou sempre por concretizar; Rui da Silva (um dos USL) foi número um em Inglaterra com um single (Touch Me) tão português como um scone. Os Fonzie eram idolatrados no Japão, onde agora Bruno Pernadas é aclamado mas são excepções pontuais. Um percurso internacional é outra conversa. Na electrónica, como no metal, ou em certos circuitos do punk, a região conta pouco, excepto quando traz origem demarcada como os a França dos Daft Punk, dos Justice e de Gesaffelstein, a Viena de final dos anos 90, a Catalunha de John Talabot e Pional, a África do Sul do amapiano, ou, claro, a Lisboa da Enchufada e da Príncipe, que também pode ser de Batida e Deejay Télio.
Pior em matéria de produção de chinfrim foi o triunfo dos Black Mamba no Festival da Canção com Love Is On My Side, a primeira vitória em inglês de sempre. Irónico como esse feito acontece em 2021 quando talvez nunca se tenha defendido tanto a portugalidade e todas as suas hipóteses. Nunca houve tanta música portuguesa a ser criada, nem nunca houve tantas personagens, histórias, dialectos, personagens e formas de expressão. Identidade é tudo aquilo que falta a Love Is On My Side, uma canção pop de esquadro blues, redonda e indistinta. Sem truques nem grandes ambições artísticas. É apenas uma balada que quer chegar o mais depressa possível ao coração. Sem portagens nem franquias. Não reivindica uma personalidade. Podia ser um lado C ou D de Lenny Kravitz. É pouco mas é o que é.
Se o Festival da Canção representasse o todo da música portuguesa como a selecção representa o futebol português no Euro 2020, aí sim estávamos muito mal vistos. Como não é o caso, quem quer vê e ouve. Quem ignora, tem Netflix, Playstation, National Geographic ou Football Manager. Carregar no gatilho é fácil e tem efeitos imediatos. Pensar sobre o assunto e dá um bocadinho mais de trabalho e mesmo na imprensa, é cada vez mais invisível a dissonância do socio-politicamente correcto.
Falemos então de Love Is On My Side. O inglês é tão legítimo como outra língua qualquer. Recordemos o dialecto apátrida dos Pop Dell’Arte, o poliglotismo de Mler Ife Dada, Reportér Estrábico e Belle Chase Hotel, o vocabulário espacial dos Blasted Mechanism, já para não citar todos aqueles que usaram a língua também como instrumento, de Sérgio Godinho a Sam The Kid ou Buraka Som Sistema. No rap, está a florescer uma escola em que as línguas se sucedem nos versos como o desenvolvimento do motor (vidé Bussola de Nenny ou Vivi Good de Julinho KSD). Se é assim que aqueles miúdos comunicam entre eles na rua e no Whatsapp, porque razão a música haveria de ser diferente?
A questão é essa. I-D-E-N-T-I-D-A-D-E. Quanto mais a língua é franca, mais é um espelho do seu autor. Quando a língua é um subterfúgio emocional, um desprezo pelo café da esquina, ou uma segunda mão dos Pearl Jam, menos honesta é. No final dos anos 90 e início dos anos 00, talvez o período mais cinzento da música portuguesa no pós-25 de abril, vingou uma escola que defendia que quem ouvia música em inglês, também devia fazer música em inglês. Nesse caso, também se devia falar inglês no café, nas compras, na escola, nos transportes públicos ou no trabalho?
Também houve bons exemplos. Os Da Weasel deram um passo decisivo de um primeiro EP em inglês para o álbum Dou-lhe com a Alma; os Glockenwise arrancaram o melhor álbum em Plástico, David Fonseca foi perfeitinho nos Humanos e a melhor canção dos Silence 4 é Sexto Sentido. Excuse Me mas o melhor de Salvador Sobral vem depois de Amar Pelos Dois, tal como o mais estimulante de Luísa Sobral está em Rosa. Será que neste filme a língua inglesa fica sempre bem?
O mundo globalizou-se, é um facto. As fronteiras da comunicação diluíram-se, mas nem por isso a língua deixa de ser uma ferramenta essencial de afecto e afinidade. Há não muito tempo, o músico Benjamim dizia, em conversa, que quando vivia em Londres e ainda adoptava o heterónimo Walter Benjamim, nem se sentia londrino nem um lisboeta de Telheiras. O inglês é legítimo, como é o esperanto ou o cantonês ou o gaélico, mas será que o português atraiçoa alguém? A língua não é apenas a fala ou o canto. Não é apenas uma bengala estética ou um recheio do som. As palavras são o lugar onde pertencemos, a comunidade onde nos integramos, a rua, o bairro, a avenida, o café, a horta comunitária, o veterinário e o mercado. Somos nós e os outros. São quem somos.