O conflito israelo-palestiniano não existe
“Nós não queremos ser apenas outros nativos americanos”, disse-nos, em 2017, Jamal Juma, ativista palestiniano dirigente do coletivo Stop The Wall, que tem como objetivo o fim do muro que o Estado de Israel construiu na Palestina. A comparação pode parecer estranha. É longínqua no espaço e é longínqua no tempo – foi há centenas de anos que começou o genocídio dos povos indígenas da América do Norte –, mas ninguém classificaria o que se passou (e passa) no território que hoje são os Estados Unidos da América como um conflito. Milhões de pessoas foram mortas, expulsas das suas vilas, violadas e escravizadas. Foi genocídio.
É talvez mais óbvio – porque menos longínquo –, mas ninguém diria que o que se passou na segunda metade do século XX na África da Sul foi um conflito entre não-brancos e o governo sul-africano. Não. Era apartheid. Tal como ninguém chamaria hoje ao regime em prática em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde até à independência, um conflito entre povos africanos e o Estado português. Não. Foi colonialismo.
Defender estes períodos históricos como se de conflitos se tratassem contribui para eufemizar a injustiça e as atrocidades cometidas. Fazê-lo é utilizar a linguagem do opressor, colocando os dois lados em equivalência, como se os dois tivessem a mesma legitimidade, a mesma força, o mesmo poder. Mas a escolha de palavras importa. Ela é, em si, um ato político.
Esta semana, a questão da Palestina voltou a estar nas notícias (deveria estar sempre?). A mais recente demonstração pública da falta de vergonha do regime israelita parece ter-se iniciado com a tentativa de expulsão de dezenas de pessoas palestinianas das suas casas – algumas delas onde nasceram e cresceram, onde nasceram e cresceram as suas famílias –, em Sheikh Jarrah, para dar lugar à contínua limpeza étnica de Jerusalém, substituindo-as por judeus israelitas. A resistência palestiniana foi respondida por ataques a edifícios religiosos (em tempo de Ramadão) e, claro, bombardeamentos em Gaza. Até ao momento da escrita deste texto, mais de 100 pessoas foram assassinadas pelo exército israelita, incluindo dezenas de crianças.
Apesar de sempre assustador, nada disto é novo nem surpreende particularmente quem tem acompanhado o que se passa na região. Os cíclicos massacres praticados por Israel são apenas produto do que o povo palestiniano chama a Nakba contínua: a continuação do projeto colonial israelita, plasmado desde ainda antes da sua fundação, em 1948. É por isso que o que se passa em Sheikh Jarrah não é diferente do que se passa, diariamente, em toda a Cisjordânia, ou do que se passava, em 2017, quando eu e a Maria Almeida estivemos na Palestina.
É por isso que, quando jornalistas e editores descrevem o que se passa na Palestina como “um conflito”, ou quando se atrevem a definir a violência no terreno como uma série de “confrontos”, estão a escolher um lado – o lado dos opressores. Não. Na Palestina não existe um conflito. Existe um projeto colonial de apartheid com o objetivo de dizimar uma população. E, enquanto jornalistas, quando escolhemos ignorá-lo, usando outras palavras, estamos a escolher o caminho da destruição.
Esta crónica foi publicada originalmente no Fumaça, nosso parceiro, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.