Limpa a cidade para passar a procissão

por Fumaça,    27 Maio, 2021
Limpa a cidade para passar a procissão

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Lisboa está “brilhante e cintilante” para a chegada da rainha. Há desfile de barcos no Tejo, um cortejo num coche do século XVIII, arranjou-se um Rolls Royce e as melhores loiças para a ocasião. Limpou-se a cidade. Nas imagens da visita de Isabel II do Reino Unido, em fevereiro de 1957, durante a ditadura, não há quem desalinhe com a imagem do Portugal perfeito. À vista das câmaras, não há roupas rotas, mãos estendidas, pessoas que pedem na rua ou vivem sem teto. Não se vislumbra pobreza.

Nada saiu da ordem, diz, aliás, um documentário de 2012, da RTP: “A população soube fazer o que era necessário. As pessoas souberam-se colocar ordeiramente e obedeceram as regras pré-estabelecidas. As mulheres e crianças acenavam lenços brancos, bandeirinhas, e os homens atiravam os seus chapéus ao ar.” O povo é sereno. E “Portugal fez ‘boa figura’.”

Se esta imagem é esperada de um regime que expurgava quem exibisse as suas insuficiências, será mais chocante que ainda hoje se faça por esconder quem, só pela sua existência, põe em causa a ideia de uma cidade moderna de gente feliz e ruas impolutas. Ainda hoje, há dias em que se limpa a cidade varrendo pessoas.

Nos últimos anos, cada vez que a Maratona de Lisboa passa em Santa Apolónia, vem a ordem para as pessoas em situação de sem-abrigo que vivem debaixo dos viadutos: tirem as vossas coisas daqui, vão viver uns dias para outro lado. A pandemia interrompeu o hábito, mas Maria, Vítor, Simões e os restantes vizinhos não tardam a ter que arrumar os pertences e arrumar-se noutro sítio por uns dias até que a corrida passe.

Depois, sim, poderão voltar a ocupar o espaço onde vivem, alguns há vários anos, onde não há acesso próximo a água potável ou a uma casa de banho pública.

Em março, tornou-se público que a Câmara Municipal do Porto tem por hábito retirar camas e pertences de pessoas em situação de sem-abrigo em ações de “limpeza urbana”. “Ações recorrentes de reposição da normalidade em alguns espaços onde coexistem ameaças concretas à saúde ou à segurança pública”, diz a autarquia – subentendendo-se ameaças à saúde ou à segurança de outros munícipes. Estar sem-abrigo é também uma questão de saúde e segurança para a pessoa que está nessa situação – e, por alguma razão, essa é mais fácil de relativizar.

A autarquia fá-lo de forma recorrente, no horário de expediente, independentemente da pessoa que ali vive estar no local para reclamar o que lhe pertence. As pessoas que não têm casa deixam de ter direito ao lugar e ao que é seu.

Nas últimas semanas, nas freguesias de Areeiro e Arroios, em Lisboa, tem-se discutido o direito aos espaços públicos. Um pavilhão desportivo no Areeiro, desde março de 2020 a funcionar como centro de acolhimento temporário para cerca de 90 pessoas, é um “antro de camas improvisadas”, sem condições para que ali se viva tanto tempo. A câmara falou em fechar o espaço e abrir outro para o substituir, num antigo quartel na vizinha Arroios, com mais capacidade. Clarificou, entretanto, que a cidade precisa de ambos e não pode fechar nenhum. Mas das duas freguesias surgiram petições que reinvidicam respostas para sem-abrigo sim, mas aqui não.

Uma delas é iniciativa da Junta de Freguesia do Areeiro, que promoveu a recolha de assinaturas porta a porta. Queixa-se do “aumento da toxicodependência, da mendicância, da sensação geral de insegurança” e do lixo acumulado para pedir – citando o título da petição – a “restituição do complexo desportivo municipal do Casal Vistoso à cidade de Lisboa”. Não consigo outra pergunta que não seja: quando é que as pessoas sem casa deixaram de ser também da cidade?

Arrumar alguém num canto esconso não combate dependências, não reabilita, não inclui. Não resolve nada. Faz o contrário. É uma chapada na autoestima, destrói laços e referências, é um passo atrás naquilo que a pessoa possa ter conquistado, sozinha ou com as equipas técnicas que a acompanham, a quem o Estado paga para reabilitar e reinserir socialmente. O mesmo Estado que lhe dirá, noutros momentos, vai-te reabilitar para outro lado.

Tirem-me mas é esse mendigo da frente que a minha vida já me dói demais para ainda ser confrontada com a dor dos outros. Os outros que são culpados das escolhas que fizeram, que eu, claro, nunca faria.

A coisa mais dura que falar com pessoas em situação de sem-abrigo me ensina é um clichê: que eu posso um dia estar exatamente naquele lugar. Que a minha escolaridade, rede familiar e conta bancária não são uma proteção infinita. O João, que conheci em Santa Apolónia, lia tanto como eu gostaria de fazer e percorreu o mundo como dificilmente o farei. E viveu anos na rua, preso a uma adição, primeiro, depois incapaz de refazer a vida em pedaços. 

O problema de haver pessoas em situação de sem-abrigo não é o incômodo de tê-las à porta; é o facto delas existirem, provas vivas de uma sociedade que falhou em toda a linha. Para resolver essa questão, onde está a pressa? Há propostas de soluções revolucionárias em marcha, de que o Housing First tem sido o exemplo bandeira; programas de gestão de consumos feitos de forma individual e humanizada; iniciativas de formação e emprego apoiado. Mas, até lá, o direito à cidade deveria ser, de facto, de todos. A cidade não pode ser casa só para alguém que já a tem.

Esta crónica foi publicada originalmente no Fumaça, nosso parceiro, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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