Lena d’Água por entre as gerações
Quando se aborda a música emergente no pós-Revolução de Abril em Portugal é incontornável falar de Lena d’Água. Uma voz que se imortalizou a solo e em bandas e que, recentemente, foi, como vários outros artistas, redescoberta e integrada na música que se cria nos últimos anos. É notória a inspiração e admiração que os atuais músicos detêm em relação a Helena Maria de Jesus Águas, um nome do mais português que existe, assim como a sua música e a sua presença.
A artista nasceu a 16 de junho de 1956, em Lisboa. O seu pai foi, nada mais, nada menos, do que o craque José Águas, o avançado que ergueu por duas ocasiões a Taça dos Campeões Europeus ao serviço do Benfica. Os familiares, também ligados ao futebol, são Raúl — primo — e Rui Águas — irmão —, ex-jogadores e treinadores. Frequentou uma escola, à luz do seu tempo, altamente religioso e conservador, o Externato Via Sacra que talvez tenha acicatado o seu espírito rebelde e provocador, seguindo-se o Liceu Maria Amália. No entanto, a sua vida cresceu no coração da capital ao lado da arte, da música e da vida citadina que o bairro de Santa Cruz, em Benfica, lhe proporcionava. Ia ganhando familiaridade com as crianças quando, aos 13 anos, já era catequista em Benfica, evitando os dogmas e falando, essencialmente, sobre Jesus.
Foi numa dessas festividades, numa reunião de moradores, que, por mero acaso, foi convocada por um amigo para a ajudar a interpretar uma música de Sérgio Godinho, “Pode Ser Alguém Quem Não É?”, com o seu assobio. Aos 18 anos de Helena, naquele longínquo mas iluminado ano de 1974, foi uma descoberta de vida para a vida: a sua voz era diferente pela positiva. Apesar de ter ingressado no curso de Sociologia, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, já que era uma curiosa por essas expressões mais místicas, abdicaria deste por causa do 25 de abril e ingressaria no Magistério Primário — estabelecimento de formação de professores do Ensino Primário.
Era uma fase em que já era arrojada nos modos e nos costumes, começando a explorar o yoga, a fumar marijuana e a ser vegetariana. Entre alguns palcos locais, encontrou a sua praia com os Beatnicks, uma banda de rock da Amadora, com inspiração nos Yes e nos Genesis, que já contava, desde 1965, com os instrumentais dos guitarristas João Ribeiro, Manuel Pedro, Justiniano Grilo e do baterista José Manuel Bandeira. No entanto, a formação que encontrou Lena d’Água (então Helena Águas) — casada com o viola-baixo Ramiro Martins (teriam uma filha, Sara), que faria parte dela em 1972, quatro anos antes do ingresso da cantora — seria uma que já continha um vocalista, António Leal (Tó Leal), o teclista Fernando Santos, o baterista Luís Araújo e o guitarrista Jorge Casanova. Com um repertório que, inicialmente, abrangia mais covers que originais, foi, num misto de rock sinfónico com progressista, que nasceram os primeiros originais, interpretados, entre outros, por Lena d’Água até ao ano de 1978, aquando da sua saída do grupo, depois de se divorciar de Ramiro. Entre outros palcos pisados, destaque para a ilha Terceira, nos Açores. Os estúdios ficariam para depois, já que, agora, a sua presença cintilava no televisor, já que havia cantado no coro do grupo Gemini, que venceu o Festival da Canção em Portugal nesse mesmo ano, e que concorreu no Festival da Eurovisão, então em Paris.
A primeira experiência que teria com o estúdio seria com a banda de rock progressivo Petrus Castrus, que contava com o guitarrista Fernando Girão, do baixista Rui Serrão e da voz de Nuno Rodrigues. “Ascensão e Queda” batizava-a nessa realidade enquanto se envolvia no teatro, na companhia de teatro Eu Passo com a peça infantil “Ou Isto ou Aquilo”, encenada por José Caldas, assumindo as funções de atriz e de diretora musical. Seria uma peça que, ao invés de percorrer o país, percorreria, antes, os subúrbios mais pobres de Lisboa, numa tentativa de sensibilizar e de captar o interesse dessas comunidades para a criação artística. Para aqui traria o compositor (e futuro amor) Luís Pedro Fonseca, que havia conhecido anteriormente e com quem criaria uma parceria musical bastante frutífera (passe o trocadilho). Seria neste período que obteria o nome artístico de Lena d’Água, já que atuava, então, por ocasião, num grupo chamado Dia d’Água, nome que lhe caiu bem e que, assim, se imortalizaria. Foi com ele que gravou os primeiros singles, em 1979, com “O Nosso Livro” (um poema de Florbela Espanca) e “Cantiga da Babá” (poema de Cecília Meirelles); e o primeiro disco, “Qual É Coisa Qual É Ela?”, também ele de cariz infantil, com letras de Maria João Duarte. Enquanto isso, já mãe e com o Magistério Primário concluído, dava aulas de música e de educação especializada, cruzando isso com outras colaborações pontuais no campo da publicidade e na participação de vários grupos corais, colaborando com cantores, como Marco Paulo ou António Calvário.
Depois de uma fugaz participação no Festival da Canção de 1980, com uma interpretação do tema de Paulo de Carvalho “Olá Cega Rega”, surgiu um dos grandes projetos da sua vida: a criação da banda Salada de Frutas, ao lado de Luís Pedro Fonseca e do baixista Zé da Ponte. Um grande exemplo dessa emergente música “ligeira” portuguesa pós-25 de abril, o grupo começou a trabalhar em estúdio para o álbum “Sem Açúcar”, integrando, também, o baterista Guilherme Inês e o guitarrista Zé Carrapa. O seu look ousado e irreverente causava impressão e impacto no público, que se afeiçoou de tal forma que a começou a mimar como uma menina bonita e, noutros olhares, como uma sex symbol (algo que lhe seria prejudicial numa certa fase da carreira, onde se queria destacar pelo valor meramente artístico). No ano seguinte, destacou-se “Robot”, ainda hoje tantas vezes repescado. Esse ano de 1981 seria marcado por uma saída muito conturbada de Lena e de Luís Pedro Fonseca, depois de uma atuação na Festa do Avante, já que os demais membros alegaram que a cantora não tinha perfil para fazer parte de um projeto que se queria afirmar como de rock alternativo. Lena e Luís Pedro continuariam a trabalhar juntos (este criaria a Banda Atlântida, que acompanharia a cantora) e assinaram um contrato com a editora Valentim de Carvalho, resultando em vários trabalhos de grande sucesso comercial, nomeadamente “Perto de Ti” (1982) e “Lusitânia” (1984), envolvendo singles reputados, como “Vígaro Cá Vígaro Lá/Labirinto”, “Jardim Zoológico/Papalagui”, “Nuclear Não, Obrigado”, “No Fundo dos Teus Olhos de Água” e “Sempre que o Amor Me Quiser”.
Lena d’Água veria alguns dos seus poemas, que redigiu durante a adolescência e a recém-adultidade (15 a 22 anos), a serem compilados e publicados em “A Mar Te”. Nos estúdios, a produção do inglês Robin Geoffrey Cable, que esteve presente nos dois discos anteriores, prevaleceu aquando da mudança de editora por parte de Lena e de Luís Pedro (da Valentim de Carvalho para a CBS) e gravaram “Terra Prometida (1986), protagonizado pelo single “Dou-te um Doce”. Contaria, de igual modo, com a ajuda do linguista António Emiliano para os arranjos e para a produção de um LP, “Aguaceiro” (1987), com versões de canções de Zeca Afonso ou de Sérgio Godinho, entre outros. Dois anos depois, “Tu Aqui” contou com a interpretação de temas inéditos de António Variações e com a colaboração musical de Mário Laginha. A cantora surge nos anos 1990 já como uma artista consolidada e conhecida, mas agora a ver-se com o vício da droga — a heroína — que se havia apoderado da cantora no ano de 1989 e que havia levado amigos seus. Foram quase dez penosos anos em que, de quando em quando, a cantora se dirigia ao Casal Ventoso e a outros lugares para poder adquirir esse peso pesado. Depois de dois delicados processos de desintoxicação, em 1997 e 1998, Lena conseguiria ver-se livre desse grande revés que a colocou numa situação muito débil familiar e financeiramente.
Envolveu-se, daqui em diante, em trabalhos de coletânea com outros artista de relevo, como a cantiga de embalar do Vitinho. Depois de rescindir com a CBS, prossegue, como nunca havia deixado, a carreira nos palcos, integrando um grupo com as cantoras Helena Vieira e Rita Guerra, por convite de Pedro Osório, em “As Canções do Século”, com uma setlist que integrava os grandes hits do século XX, entre portugueses, mas também anglófonos (ingleses e americanos), franceses e italianos. Lena também arriscou ao atuar em língua mirandesa com o grupo Galandum Galundiana, numa tournée bem-sucedida pelos arquipélagos portugueses.
De igual modo, emprestou a sua voz à Brigada Victor Jara e fez parte dos discos “Novas Vos Trago” (1999, em “Parto em Terras Distantes”) e “Ceia Louca” (2006, em “A Moda do Pastor”). Aventura-se, entretanto, no jazz, idolatrando e emulando o repertório da cantora Billie Holiday, para além do de Elis Regina (duas inspirações que, ironicamente, sucumbiriam perante o vício), e, para além das salas de todo o país, notabilizou-se como presença assídua no Hot Clube de Portugal (daqui, nasceu o álbum com selo da editora Blue Note, “Sempre – Ao Vivo no Hot Club de Portugal”, de 2007, editado pela EMI, grupo da qual a Blue Note faz parte). Nunca deixou, também, de viajar um pouco por todo o país, com hits seus e de outrem. Foi, assim, o início do século XXI de Lena d’Água, muito em viagens pelas músicas das suas referências e pelo seu repertório até então. Mudou-se, de igual modo, de Lisboa para o Bombarral, ao lado da sua numerosa companhia animal (entre quatro cães a cinco gatos), uma vila mais deslocada da centralidade, mas sem esquecer as origens e o seu bairro.
2013 foi, de igual modo, um ano importante para a artista, já que viria a colaborar com o grupo revivalista Ciclo Preparatório que, no ano anterior, tinha lançado o tema “Lena del Rey”, uma homenagem à música e cruzando-a com o vulto contemporâneo de Lana del Rey. Assim, do disco “As Viúvas Não Temem a Morte”, nasceu a colaboração entre ambos na faixa “A Volta ao Mundo com Lena d’Água”. No ano seguinte, e potenciando essa redescoberta, chegou a altura de relançar os seus clássicos com uma roupagem moderna. Para isso, contou com a banda Rock n’ Roll Station — com Pedro Cação na bateria, Paulo Franco no baixo e João Guincho na guitarra — para a auxiliar e para voltar a devolver a “Sempre Que o Amor Me Quiser”, “Robot”, “Demagogia”, “Beco”, entre outras, à ribalta. Foi essa espécie de ressurreição que a permitiu voltar ao Festival da Canção, no ano de 2017, com “Nunca Me Fui Embora”, composta por Pedro da Silva Martins.
Seria, precisamente, com este que voltaria à produção de originais, concluindo com o lançamento de “Desalmadamente” (2019), contando com a ajuda de músicos emergentes, como Benjamim ou Francisca Cortesão, mas também a participação da banda Primeira Dama (com Martim Brito na bateria, António Queiroz no baixo, João Raposo com a guitarra e o sintetizador e Inês Matos na guitarra solo) em concertos seus, que se tornou crucial na revitalização da artista. Daqui, destaque para os temas “Queda Para Voar”, “Hipocampo” e o homónimo do álbum. De igual modo, destaque para colaborações com rappers, como o grupo angolano SSP (“Sempre que o Amor Me Quiser”, de 2000) e a rapper portuense Capicua (Último Mergulho, 2020).
Lena d’Água tornou-se, assim, de uma forma algo imprevista, numa artista intemporal, pertencente a várias gerações. Enquanto os pais vibravam e trauteavam as canções de Lena, por algum tempo, os seus filhos não conheciam senão por ouvir no carro ou em casa com eles. Porém, nesta década de 2010, começaram, também eles, a sentirem-se compatibilizados com a sua música e com a sua energia. Resultado disso foi, também, a sua presença em inúmeros festivais de música portugueses nos últimos anos e as várias colaborações com artistas de nomeada atualmente. Conseguiu, para além de unir os êxitos que havia construído na década de 1980, fazer alguns outros nestes últimos tempos e, assim, fazer uma ponte de arte, daquelas que tão bem ficam na união de um passado que permanece presente e de um presente que ajuda o passado a ser, também ele, futuro.
Este artigo foi editado após algumas notas enviadas pela própria artista.