Ao Bernardo Sassetti
Há dois dias, na casa de Maria João Pires em Belgais, os amigos de Bernardo Sassetti celebraram o seu cinquentenário.
Estiveram Pedro Burmester e Mário Laginha.
Estiveram outros músicos, gente que o acompanhou, jornalistas.
Deve ter sido bonito.
E especial.
Talvez o Bernardo tenha podido soprar as velas de um bolo sem textura, mas com o sabor das coisas boas que nos deixou. Ou então talvez tenha podido simplesmente sentar-se no seu novo piano de cauda mágica que soprará a música até ao mundo onde já não pertence.
O Bernardo era um grande músico.
Um extraordinário pianista. Mas quando olhava, quando nos olhava, parecia o mais simples dos homens. Os seus olhos quase pediam desculpa pelo espaço que ocupavam, era bom… é possível dizer isto desta forma?
Talvez ele não concordasse, o que é isso de ser bom? Mas era o que me parecia quando o via, parecia sempre num estranho desequilíbrio equilibrado, numa fragilidade que era uma fortaleza, num talento que esmagava pela contenção, pela sensibilidade, pela vida que continha a morte, pela raiva implícita da criação, pelo amor que incluía o desamparo, pela impossibilidade de uma rede.
Oiço-o na banda sonora de Alice.
Perfeita a “noite” que compôs, sinfonia sobre a ausência, sobre a perda, o seu próprio requiem.
Oiço-o num concerto enquanto escrevo. O piano como uma queda de água leve, como uma torrente de vida, um suave milagre.
Escuto-o numa jam session, no Hot Clube. A sua generosidade, o seu sorriso de criança, os seus improvisos.
Lembro-me das suas fotografias. Da obsessão pelo cinema, pelas imagens, pela procura de uma explicação possível para um ofício de viver que o condenou ao mesmo destino de Pavese.
Oiço-o outra vez hoje.
Dois dias depois de Belgais, em casa de Maria João Pires,
No dia em que talvez tenha soprado as velas de um bolo sem textura.
Num dia em que certamente soprará aos ouvidos de Maria e Leonor, suas filhas, uma melodia que só elas conseguirão escutar.
Quanto a mim, quanto a nós, resta-nos ouvir o tanto que dele ficou. E ao adormecer, de olhos fechados, escutar o seu piano de cauda onde continuará a tocar até à eternidade.