Ainda dá para ter medo?
Será que, nos dias que correm, dá para ter medo? Já não se sabe se isso poderá acontecer, com tamanhas exigências sociais e laborais, as tais que assolam o dia que dá lugar à noite e vice-versa. Não sei do que se trata esta obsessão do medo não existir. Os apelos pela calma e pela quietude são imensos, mas já ninguém quer saber do medo. Tudo faz parte de um combate, de uma repressão que só o quer eliminar. O medo é, desde logo, o primeiro mecanismo de prevenção e de precaução com aquilo que pode constituir uma ameaça física, mental ou emocional, baseando-se (ou não) no passado vivido ou na experiência conhecida. O medo não pode ser excluído de qualquer modo (nem dá). Deve, antes, ser respeitado, ouvido, escutado, até acarinhado. Sim, acarinhado. Não é por acaso que ele é o mecanismo que faz de nós sermos mais seres sociais. Muitas vezes, é o próprio medo que comungamos que nos faz unir, numa adversidade cuja resposta é mais integrada do que isolada.
O medo tem destas coisas. Não é só comando de restrição ou de travão, mas também de instrução e de pensar para agir. Ainda assim, o medo é, socialmente, algo que deve estar enjaulado e esquecido, reprimido com as tais pulsões inadequadas para as exigências do quotidiano, de uma vida que obriga a que os comprometimentos adultos sejam cumpridos, assim como os riscos da juventude, que não foram mais do que a superação desse medo, sempre alavancados por uma vontade de ir mais longe. Também em adultos há o medo. O medo está presente até ao fim, mesmo na fase mais madura e iluminada que o espírito pode ambicionar alcançar. O medo é marcador de que a evolução pode ser cada vez maior. É marcador que não deixa a humanidade conformar-se. De certa forma, o medo é esse inconformismo. No entanto, e como referido, por que será ele tão inconveniente? Será por sinalizar uma fraqueza que não pode existir perante a alteridade, ou seja, o outro?
Defraudar as expectativas do familiar, do amigo, do colega do trabalho, do patrão, do companheiro, as nossas mesmas. É inconveniente, de igual modo, perante um desafio, perante uma autoridade do que é o viver e o ser, assumir o medo. Assumi-lo é reconhecê-lo e reconhecer que não somos os seres tão invencíveis com os quais sonhamos ser e que preconizamos ser a mais distinta realidade. O que será feito do ego, com todas estas turbulências? É, ainda, mais real ou cada vez mais um mar de dúvidas, de interrogações, de perturbações? Aquele que mais temeu o medo e encontrá-lo pelo caminho será, de facto, o mais medroso. Aquele que, pelo contrário, se foi fazendo de medos, mais ou menos, foi percebendo que foi vivendo. Partilhando-os ou convivendo com eles, percebeu que a vida é, também ela, feita do medo. Do medo de ir mais longe, tanto um metro ou um milhar de quilómetros, de superar preconceitos, de emancipar aquilo que vai na essência. De arriscar no trabalho, de sugerir uma ideia diferente dos demais, de convidar aquela pessoa para sair, de fazer uma mudança drástica, que implique a desordem logística e emocional.
Afinal de contas, dá para ter medo? Dar, dá, mas não fica bem. Percebessem eles que o medo é o que faz de nós humanos e talvez a sociedade fosse despertando para a necessidade de se ir assustando. O que será de quem não se assusta ou se amedronta? O ambiente poluído, a mente doente, a sociedade alienada e conformada, os vírus a difundirem-se, tanto biológicos como outros tantos de tipos diversos, as relações humanas que vão azedando e se vão petrificando, gelando até a um paradoxal incêndio. Como criança, como adolescente, como adulto, sempre tive o medo, desde em relação às coisas mais insignificantes até às mais danosas. Terei outros tantos, se me deixarem. Mas que nenhum seja o medo de não ter medo.